243-O SUMIÇO DO SUPER-HOMEM-Gibis

Naldinho gosta de ler gibis. Leitura feita às escondidas, pois a posse ou o simples manuseio das revistas são proibidos pelo pai.

— Tem muita violência nessas histórias. Menino que lê gibi vira bandido quando crescer. — O garoto nem presta mais atenção à ladainha, que entra por um ouvido e sai pelo outro.

Tem dez anos e está no quarto ano do grupo escolar, o último ano do curso primário. De manhã, freqüenta com assiduidade a escola, mas, depois do almoço, esquece os livros. As tardes quentes da primavera de 1945 são convidativas a uma leitura preguiçosa das aventuras de Super-Homem, Capitão Marvel, Mandrake ou qualquer outro herói.

Tendo trabalhado durante todas as férias escolares de julho na venda de Totó Miranda, ajudando no balcão ou fazendo entregas de compras na vizinhança, até mesmo dando uma mãozinha à Dona Mariquinha, mulher do Totó Miranda, no engarrafamento de um xarope alcoólico vendido aos copos, no balcão, como “vinho branco”, ganhou uns trocados, que usou para realizar seu grande sonho de leitor de gibis: adquirir o livro “Nasce o Super-Homem”.

Havia visto propaganda do volume em outras revistas de quadrinhos: na capa, a figura magnífica do imortal herói, em pose elegante, as mãos na cintura, a capa esvoaçante, em cores vibrantes de vermelho e azul. Acendeu-lhe uma tentação irresistível de possuir aquele livro.

Comprou-o através do Pedro Jornaleiro, sob encomenda e com pagamento adiantado. Esperou todo o mês de agosto, e no finzinho recebeu o livro. Fremiu de prazer ao desembrulhar o pacote e manusear, pela primeira vez, um livro novinho em folha. Cheirou. Sentiu a capa envernizada. Abriu o livro e começou a ler, sentado em sua cama. Enlevado, nem percebeu a presença da mãe, chegando para varrer o quarto.

— Que é isso, Naldinho?

— Ãh! — Surpreso, tenta disfarçar. — É um livro...livro de histórias.

— Super-Homem, hein? — A mãe sabe das coisas. — De novo lendo essas porcarias de gibis.

— Num é gibi, não, mãe, é um livro. — Arnaldo mostra o livro para a mãe.

— Livro ou gibi, é mais uma dessas porcarias de super-homem, capitão marvel, tocha humana. Se seu pai souber que você tá lendo isso em vez de estudar, vai levar uma tunda.

— Tava só folheando, mãe.

— De quem é esse livro? Quem te emprestou? Foi o Benito, por acaso?

Arnaldo não mente. Conta à mãe o destino dado ao dinheirinho ganho nas férias.

— Mas você é trouxa mesmo, menino. Pagar dez cruzeiros por isso aí?

Agora, Arnaldo tem de se defender também da aplicação do seu dinheiro. Não tem como. Já podia antever o que viria. Lembra-se do pai repetindo sem cansar. “Só tem violências nessas revistinhas e quem lê gibi vira bandido quando crescer” . Por conta dessa opinião contrária, por duas vezes Arnaldo perdera suas revistas, que guardava com cuidado, escondidas. Bastava um descuido e elas eram descobertas e destruídas.

A mãe sentiu as lágrimas nos olhos do filho. Mordia os lábios para não chorar.

— Olha, não vou contar pro seu pai essa besteira que você fez. Mas você me promete que só vai ler nas férias. Tá no final do ano, se você levar bomba e não tirar o diploma, teu pai te mata de correiadas. Promete?

— Prometo, mãe, — O alívio que sente é tão grande que salta da cama e abraça a mãe.

Com o livro das aventuras do herói predileto em seu poder, escondido entre cadernos e material escolar, Arnaldo não resiste à tentação. De vez em quando, longe da vigilância da mãe, folheia o belo volume. A capa mostra, nas cores vermelha e azul, o super-herói numa pose de homem vitorioso, com as mãos na cintura, sorrindo para ele. A roupa justa destaca a poderosa musculatura. A capa esvoaçante e um foguete interplanetário, ao fundo, imprimem uma dinâmica ao quadro que fascina o menino.

A promessa feita à mãe foi, pouco a pouco, sendo esquecida. Arnaldo não só lia às escondidas como estava com a atenção presa às aventuras do herói. Passou a viver num mundo só seu, compartilhado exclusivamente com o Super-Homem. Em conseqüência, o rendimento na escola diminuiu. O boletim de notas de setembro foi tão ruim que a professora, Dona Lucinha, chamou a mãe para uma conversa.

— Não sei porque o Arnaldinho está tão desatento. Sempre foi aplicado, mas neste mês foi um arraso. Não conseguiu nem a média e quase ficou no último lugar, entre os colegas.

Dona Geralda adivinhou o que se passava. O filho estava lendo às escondidas e a atenção estava toda voltada para as peripécias daquele herói vestido de azul e vermelho, como um palhaço.

— Pode deixar comigo, dona Lucinha. Sei como endireitar o Arnaldinho.

Em casa, fala com o marido da situação escolar do filho, sem lhe revelar a causa, o livro do Super-Homem. Leôncio tem uma conversa séria com o filho, promete castigos e até surra, se o garoto não fizer a sua obrigação, que é estudar e ter o diploma no fim do ano.

— Que vergonha vai ser se você repetir o quarto ano. Todos os seus colegas recebendo o diploma e você...Para de chorar, garoto, e presta atenção no que tou te falando.

A mãe sabia que a atração pelo livro de aventuras era irresistível para o filho. Surrupiou o livro da gaveta de seu armário, escondendo-o em cima do guarda-roupas, debaixo de uma caixa grande de documentos do marido. Sem a tentação, não há ocasião, justificou-se..

Arnaldo leva um susto ao verificar que o livro desaparecera. Mas, constrangido pela conversa com o pai e pela quebra da promessa feita à mãe, não fala nada. Sabe que um dos dois (ou os dois, em comum acordo), dera sumiço ao livro. Ficou abaladíssimo. Por outro lado, tendo em vista a ameaça do pai, voltou aos estudos com afinco. No mês de outubro melhorou um pouco sua classificação, com notas boas em português, caligrafia, redação; e notas razoáveis em aritmética, matéria com a qual tinha alguma dificuldade.

Em casa, nem um pio sobre o sumiço do “Super-Homem”. O pai mantinha-se sério, ameaçador. A mãe, afável e amorosa, nunca mais falou do livro. Eu é que não sou besta de perguntar pra eles. Vai ver que o pai queimou, como já fez com outros gibis.

Nas vésperas das provas de fim de ano, as que iriam qualificar definitivamente a posição dos alunos para o recebimento do diploma, Dona Geralda surgiu com uma promessa para o filho:

— Se você tiver boas notas, vai receber um prêmio especial!

Arnaldo não se importou muito. Prêmio especial...Com certeza, um par de sapatos novos. Os presentes que recebia eram sempre calçados, roupas, coisas de utilidades. Já passara o tempo em que acreditava em Papai Noel e não ganhava brinquedos. Gostava muito de livros, e apenas em um aniversário, quando completara nove anos, seu padrinho lhe dera um . Nunca se esqueceria do aviso que lhe deram na ocasião:

— Presta atenção na história, Naldim. Meninos que mentem que nem o Pinóquio ficam com o nariz grande.

Na segunda vez que mãe lhe falou em “premio especial”, ele perguntou:

— Que vai ser? Uma roupa nova?

— Não. Vai ser uma coisa de que você gosta muito. Muito mesmo.

Arnaldo não tentou descobrir o que seria. Nem observou o brilho de malícia nos olhos dela.

Terminadas as provas, vieram os resultados. Arnaldo conseguira excelentes notas nas matérias das quais realmente gostava, e notas apenas razoáveis nas outras, que detestava. Na classificação final, ficou entre os dez melhores, o que lhe proporcionou bonitos elogios da professora e da mãe. O pai, sisudo e de poucas palavras, achou que o filho nada havia feito de extraordinário, além de sua obrigação de estudar. A mãe voltou a falar no “prêmio especial”.

— Fala logo o que é, por favor!

— Não falo, não. — Ria da curiosidade do filho. — Vai ser no dia da formatura.

E chegou o dia da formatura. Missa de manhã, sessão da entrega dos diplomas às duas da tarde, no salão do próprio Grupo Escolar Noronha Filho. Hino Nacional cantado pelos alunos. Discursos. Entrega dos diplomas. No final, abraços, beijos, muitos alunos chorando. Nenhum aluno fora reprovado, todos receberam os diplomas e a festa foi uma alegria só.

Ao chegarem em casa, antes mesmo de trocar de roupa, a mãe foi ao quarto e veio com um pacote, que entregou ao filho:

— Aqui está o prêmio especial! Presente meu e de seu pai.

O garoto, entre surpreso e assustado, começa a desatar a fita que amarra o pacote. Abre, sem rasgar o vistoso papel que o envolve. O conteúdo vai aparecendo: são revistas!

— Puxa vida! — O menino não se contém, acaba por rasgar o papel e pegar todas as revistas. Suas mãos são pequenas para segurar os exemplares de Gibi, Globo Juvenil, O Guri, O Lobinho e outras.

— Que maravilha! Tem pra mais de dez! — Deslumbrado, folheia as revistas. Não sabe o que fazer.

— Olha no fundo, tem coisa melhor!

Por baixo das revistas de capas coloridíssimas, está um outro embrulho, em papel amarelo, amarrado com fino barbante. Rápido, Arnaldo desfaz o laço, tira o papel. Surge, mais brilhante e novo do que nunca, exibindo as cores vibrantes do uniforme do Super-homem, o volume magnífico do livro desaparecido há muito, muito tempo atrás.

ANTONIO ROQUE GOBBO

BELO HORIZONTE, 24 DE SETEMBRO DE 2002

CONTO # 143 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 19/06/2014
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