Um livro esquecido de Bukowiski
               Ele era velho, tinha um bigode longo e assimétrico, baixo e os cabelos brancos estavam penteados para trás, ondulados porém ralos, havia uma calvície na frente, olhos de uma azul estranho, quase fosco e corpo deformado por uma velhice sedentária, barriga protuberante, joelhos tortos pela artrose e uma papada que lhe subtraia o pescoço, meu chefe já havia me advertido sobre ele, um senhor rico, que doava dinheiro para o hospital e havia perdido a esposa.
                -Paulo Castelo – disse sem me olhar pela segunda vez.
                -Sim, o que deseja? – eu disse sem pensar muito, me fiz de besta, nunca gostei de levar ninguém naquela parte do hospital era o meu refúgio, onde me encontrava com as vadias do hospital e onde enchia o rabo de maconha.
                -Quero um livro que esqueci aqui nesta parte do hospital, este local desativado - falou.
Fiquei surpreso, a porra do cara queria um livro! Por que ele não passava em uma livraria e comprava, queria achar uma agulha no palheiro?
                -Como, o que está me pedindo é impossível, não entra ninguém ai há anos, e eu não sei de livro algum – eu disse, porém a minha surpresa não tirou o ímpeto dele, trabalho na manutenção do hospital a treze anos e nunca vi aquela ala aberta – desculpe senhor, essa ala está fechada a quinze anos, sei que o hospital liberou o senhor, mas é inútil entrar ai e procurar alguma coisa perdida há trinta anos ou mais.
                Ele não sorria, parecia impaciente, porém mantinha-se educado, meu chefe já havia dito que ele estava realmente imbuído de uma vontade animal de passar em revista ao meu esconderijo, filho da puta, eu mesmo procurei por horas o livro, queria me antecipar aquela revista.
                -Foi em 73, mas deve estar ai em algum lugar, deve estar no esconderijo que deixei, era um livro velho do Bukowski – ele sorriu de forma casula, seus dentes, apesar da velhice eram perfeitos e tinha um jeito aristocrático e culto – depois o tempo e as coisas da vida se encarregaram de apagar o que tinha nele de meu interesse, então deixei perdido, mas com a morte da minha esposa eu resolvi recuperar.
               Foi a minha vez de sorrir, ele não apreciou a minha gargalhada e tirou um papel com o timbre do hospital e assinatura do diretor, sua fala foi sentida em minha cabeça como a voz de um sargento que não admitia réplica, firme, rouca a voz seguia os olhares duros diretos os quais eu não conseguia replicar, o homem dominava a conversa no décimo terceiro andar do hospital.
                -O senhor deve ler esse papel, o diretor me permitiu procurar o livro e ai diz também que o senhor deve me ajudar – passou a mão suada pela testa, lembrei da calcinha vermelha da médica do quinto andar e do pacote de cigarros vagabundos, latas de cervejas, os tocos de maconha e até de revistas pornográficas, o que aquele homem velho e fisionomia religiosa ia pensar?
                Sei qual livro do Bukowski ele estava falando, uma história de um carteiro que sonhava em sair com as mulheres que entregava cartas, mas nunca vi aquele livro lá.
                -Sua religião permitia ler Bukowski? – disse de forma displicente.
                -Sou ateu e professor de literatura, Bukowski é uma de minhas especialidades.
                Continuava sem entender merda nenhuma, pensei que essa coisa de casamento arranjado era para religiosos fanáticos.
Resolvi obedecer meu patrão e entreguei o meu emprego a Deus, pois as coisas são assim mesmo, quando se trabalha em um lugar e você é a mula, faz parte da massa proletária vadia que movimenta tudo sua opinião é última a ser ouvida. A bosta toda é que você faz só  o que as outras pessoas mandam, ai você pega o seu sustento sem questionar para pagar as coisas que deseja, quando sobra algum, pois na maioria das vezes é só pra pagar a sua vida, casa e comida, o mundo nunca mais vai ser diferente.
                    Ai é que lembro do meu pai morrendo à mingua, mesmo assim o banco tomou a casa dele, o velho nunca ficou devendo um centavo, só passou a dever quando não conseguia mais andar. Obedecer o sistema é um lema para quem sobrevive no mundo atual.
Eu não sentia simpatia pelo homem, nem sei porque depois de tanto tempo ele resolveu correr atrás de um livro brochura do Bukowski que se encontra em qualquer sebo.
                O homem olhou para mim, parecia adivinhar os meus pensamentos, suas rugas pareciam acentuadas, nunca poderia acertar a idade, o sofrimento envelhece as mãos, o rosto, a fisionomia de alguém de tanta idade e que nem sei como se suportava de pé.
                -Uma foto, dentro do livro tem uma foto. – Ele disse, como se essas palavras dissipassem a minha resistência, a merda de uma foto, que ficou mais de trinta anos dentro de um livro em uma ala hospitalar abandonada?
                Fiz um gesto de pacificação e disse.
                -Vamos, mas esse setor do hospital só tem sucata e entulho, pode ter todo tipo de coisas, não há limpeza nesta ala – disse e abri a porta.
                Procuramos por mais de uma hora, depois de suados ele achou o livro dentro de um criado mudo abandonado e ergueu no ar.
                -Aqui está – folheou as páginas rapidamente e achou uma foto de uma garotinha segurando um cachorrinho, foi um alivio, nem precisou ir até o quarto escuro onde funcionava o raio x, lá que estavam as minhas porcarias.
                -Está aqui! – disse e sentou em uma cadeira giratória – olha o que ela escreveu?
                Fiquei em pé ao seu lado.
                -Sua filha? – perguntei apontando a foto.
                -Minha esposa – ele disse sem tirar os olhos da foto.
                -É de quando ela era criança – falei de forma inocente, mas queria acabar com aquele diálogo e pegar as minhas revistas pornôs, ou ligar para a Maria de Lurdes.
                -Não, comprei ela, o pai me vendeu, um indivíduo mesquinho e nada que a sua cultura aceite, não fiz nada com ela antes que completasse a idade apropriada. – Qual seria, pensei e não perguntei.
Ele disse com lágrimas nos olhos:
               -Amei essa mulher, não tive a oportunidade de dizer o quanto, fiquei com ela aqui neste hospital quando a mãe dela morreu de câncer, quando eu e a velha Helena ficamos sozinhos por poucos minutos, sorrateiramente a minha boníssima sogra me deu essa foto, estava sentado ao lado do leito dela e lia Bukowski, ela disse que aquele escritor era um calhorda como eu, então escreveu alguma coisa atrás da foto, nunca li, ela passou mal e escondi o livro.
               Ele entregou a foto na minha mão.
               -Veja o que está escrito atrás dessa foto: “você retirou a possibilidade de felicidade dela, 25 anos de diferença é uma eternidade nessa vida, vou celebrar se morrer antes, muito antes, desejo que morra Paulo”, ela nunca aceitou a nossa cultura, o que é errado para um povo não é para outro.
               Casar com uma criança é errado em qualquer lugar.
                Não tive palavras, porém em segundos o homem virou a foto e esbravejou.
                -Ficamos casados vinte anos e amei a filha dela. Tenho certeza que ela me amou, mesmo nosso casamento acontecendo nas circunstâncias que aconteceu, ela me amou.
                Fiquei mudo. Estava querendo matar o velho tarado, mulher para mim é quem sabe das coisas, vinte anos pra cima, amaciada, louca de pedra e com alguma rodagem para que não seja o professor, safada na medida certa e com gosto e jeito de mulher feita, o louco do velho falava coisas e eu estada cagando pra tudo que me falava.
                -Temos que ir – disse ríspido.
                -Pode me deixar sozinho, peço alguns minutos – ele disse – gostaria de uma reflexão, agora a velhice me atormenta e para ela o tormento foi outro: de ter um marido tão velho e doente, ela não suportou ver o meu apodrecimento, ver que me tornava um fantasma, engasgado com doenças que derretiam meu corpo físico de forma irreversível, como tudo na vida que o tempo leva levou a minha vitalidade....
                -Senhor… Não sei se posso... – disse com a voz incerta, eu estava puto queria ficar sozinho no meu local, na minha área, aceitei, pois o que não tem remédio...
                -Obrigado, sairei em seguida – ele disse, sem me olhar, deixei a porta destravada.
                A pena, a punição para uma pessoa boa é a mais rigorosa, a cura para a bondade humana é o remorso, de onde tiramos tanta miséria nessas ações cheias de esperanças, incerteza sobre o caráter, a bondade e a moral são espectros que assombram o homem da minha geração, queria muito mandar o velho a puta que pariu, mas fiquei calado, morte e terror foi o que enfrentou aquela menina, meu coração compadecido daquele homem, nunca que a tristeza o tomasse e o arrebatasse para o inferno.
                Desci para tomar um café.
                Ele pulou do décimo terceiro andar e eu perdi o meu emprego.
                Foda-se, vou ficar alguns meses no seguro desemprego.
JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 06/07/2014
Reeditado em 30/08/2014
Código do texto: T4872022
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