Angel
                A chuva molhava tudo e meus sapatos estavam tão ensopados que minha meia havia enrolado e parecia um toco dentro do sapato e parte do meu pé estava desprotegido, eu havia saído as dez horas da manhã e até aquela hora as duas da tarde não havia almoçado, havia muito trabalho a fazer, com aquela chuva a coisa toda seria muito difícil.
               O meu chefe, Mauro Passos, pessoalmente me deu a missão (escritório de contabilidade às vezes se presta a essas coisas), entregar aquelas cartas a uma senhora, oitenta ou noventa anos que morava perto do centro, quase ninguém morava ali nas redondezas, centro era antro de drogados, prostitutas e idosos solitários, nem lojas havia, o local parecia desolado, decadente, um aglomerado de cinzas  e marrons,  poucas pessoas andando na rua, parte da população de moradores de rua e andarilhos moravam naquela região.
                -Jaime, entregue na mão dela, talvez precise que você leia a coisa do envelope, não sei se está cega, ela foi minha professora no colegial, fiquei surpreso quando disseram que era essa Ângela, sabe que é um pedido especial do senhor Junior, dono de uma clínica psiquiátrica, um dos nossos melhores clientes – disse Mauro, meu chefe.
                -De que se trata? – perguntei - de número e imposto que não é.
                -Não posso revelar, somente ela pode fazer isso, somente se ela quiser que você leia o que tem dentro do envelope – ele pegou uma tesoura grande e antiga, parecia bem amolada, estava em uma sacola – tem que levar isso também.
                -Uma tesoura e uma carta? Uma entrega incomum, mesmo para esse escritório? – Disse sem jeito e pensando na tremenda tempestade que se formava.
                -Sim, mas o pouco que sei, importante.
                Agora estava bem próximo da casa, uma das poucas remanescentes, diante da chuva torrencial apertei os meus olhos para ver do outro lado, deu pra ver uma senhora na varanda em uma cadeira de rodas, ela parecia contar as gotas da chuva, serena.
                “Bem pelo menos ela está em casa”, pensei.
                Atravessei a rua, cada vez que andava me molhava mais, minha cueca já havia escorregado para a perna e parecia uma corrente impedindo o movimento, não havia parte do meu corpo que estava seca, o pequeno guarda-chuva não impedia que me molhasse, não havia sentido para o guarda-chuva e joguei no chão. Molhado arrependido de ter jogado o guarda-chuva no chão olhei a pequena casa com a cerca de madeira e imaginei a coragem de alguém morar sem a proteção dos grande muros e dos sistemas de segurança.
                -Dona Marta?
                Ela fez um gesto com as mãos para que entrasse e deu graças por isso.
                -Meu Deus, você realmente está molhado, entre que vou arranjar uma toalha.
                -Nem me diga, ficarei muito grato – depois de muitos comprimentos, percebi que estava diante de uma senhora distinta que se vestia à maneira dos anos quarenta, cabelos brancos e lisos, porem penteados perfeito, estavam livres e balançavam ao vento, face sem muitas rugas, fina, sorriso amável e olhos castanhos muito vivos, nenhum idade poderia destruir aquela mulher.
                Entreguei tudo para ela.
                -Veio por minha causa? – Ela disse sorrido – deve ter sido o psiquiatra dele que enviou.
                -Sim, meu patrão Mauro, ele me pediu que entregasse para a senhora esse envelope e essa tesoura.
                Ela parou um instante.
                -Então ele morreu, essa tesoura sempre foi o troféu dele – não pude entender como alguém pode ter uma tesoura como troféu.
                -Não sei de nada – eu disse enquanto me enxugava com uma toalha muito limpa e com cheiro de perfume de limão.
                -Vou contar pra você a história do Rodolfo, o homem que salvou a minha neta, ele morreu, assim estou livre para torna-lo um anjo – ela fez uma pausa disse que prepararia um café e contaria a história. – Esse rapaz foi acusado de pedófilo e quase acabou preso, mas alguma coisa no meu coração dizia que ele não era alguém ruim. Eu fui no clube uma vez, com meu filho e minha netinha, ela tinha onze anos, Rodolfo ficava parado perto da piscina, sentava em uma mesa e ficava cortando papel, eu achava um pouco anormal, um adulto parado cortando papel com essa tesoura, redondinhos, cubos, após alguns meses os pais achavam que ele fosse um pedófilo que ficava olhando as meninas e os meninos dentro da piscina.
                Concordei que era muito estranho.
                -Pois é – ela continuou – mas eu não, achava que ele poderia ser um maluco inofensivo, depois de alguns meses um delegado prendeu Rodolfo para averiguação, eu fiquei sabendo e fui até a delegacia, arranjei um advogado e o soltei, pedi que não fosse mais a piscina.
                Ela tomou um pouco de café e perguntou se estava me enchendo com aquela história, eu disse que não, que o café estava maravilho e comi um biscoito de chocolate.
                -Ele voltou a cortar papel na piscina, procurei saber quem foi Rodolfo, se era louco e comecei a me sentir culpada por soltá-lo, se ele fizesse mal para uma daquelas crianças, se fosse a minha neta? Estava nervosa, pois nada descobria sobre Rodolfo, por que ele era da Bahia –aquilo se arrastou por um período e sempre fazia questão de ir aquela piscina e ele sempre estava lá, fiquei a ponto de denunciá-lo novamente, porém antes do aniversário de treze anos da minha neta fomos para a piscina e convidamos vários amigos, a piscina era grande, foi até desativada, Rodolfo estava lá, eu estava disposta a brigar com ele quando ouvi um grito, o grito da minha filha.
                -Machucada? – perguntei.
                -Não, Helen, minha neta, estava presa pelos cabelos no fundo da piscina, Rodolfo entrou com a tesoura na água e a salvou – ela tinha lágrimas nos olhos – ele me disse depois que a filha dele havia morrido assim, que procurou alguma coisa para cortar os seus cabelos e não conseguiu encontrar, falou do desespero dela tentando fugir daquele filtro diabólico, aquilo me abriu os olhos com relação ao julgamento que fazemos das pessoas.
                -O que aconteceu com ele? – perguntei.
                -Teve tuberculose, foi internado, depois teve dois derrames e problemas psiquiátricos sérios, eu, meu marido quando vivo e meu filho, nós mandávamos dinheiro para a mulher dele, nada demais, só para ajudar, Rodolfo ficou na cama por mais quinze anos – ela deu um suspiro e completou – agora está morto, ele sempre foi grato a mim, deixou com o psiquiatra dele os seus dois amuletos – ela levantou o envelope e a tesoura.
                -O que tem no papel? – perguntei.
                -Um número, só um número, ele nunca me revelou quantas crianças havia salvo antes de adoecer, acho que revelou antes da morte, ele quis que eu soubesse – disse abrindo o papel e mostrando o número cinco, um homem louco que havia salvado cinco criança e que por causa da perda da filha havia enlouquecido, pensei no sorriso da minha filha e fiquei desesperado de imaginar aquele anjo debaixo da água e eu sem poder fazer nada, ideia repugnante.
                Tomei o café em casa, beijei a minha filha e sorri ao relembrar essa história incrível.
JJ DE SOUZA
Enviado por JJ DE SOUZA em 11/07/2014
Código do texto: T4878721
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