Fração

Em mais um dia normal ela acordava as 6 horas da manha no seu casebre do subúrbio paulista. Levava a mão ao despertador que soava a mesma canção pela manhã depois de muito tiquetaquear com seus ponteiros de plástico. Levantava-se e dirigia-se ao banheiro como de costume, usava o vaso, a pia e depois o box fechado de cortinas

plásticas com desenhos de peixes. A água fria do chuveiro e o sabonete com o cheiro doce que se fazia sentir com facilidade a despertavam de seu pesado sono, só assim se sentia segura e preparada para o dia que viria. Sua toalha outrora felpuda passava pelas

rugas de seu corpo como se as linhas do tempo levassem a algum caminho desconhecido. Apenas com as roupas debaixo e seu chinelo azul e branco dirigia-se à cozinha. Um pão de forma na geladeira, alguns biscoitos de nata em um velho pote com os ornamentos de biscuit que ela mesma aprendra a fazer em uma oficina oferecida pela

igreja que frequentara um dia. Na fruteira, alguns ornamentos de cera de sua própria autoria e umas poucas frutas reais se faziam presentes, apenas algumas laranjas e maçãs. Depois de comer seu pão com manteiga na chapa pegava o espremedor e espremia algumas laranjas enquanto mordiscava seus petiscos de nata. Enchia algumas

garrafas pequenas e o velho rádio informava a situação das vias que percorreria durante o dia dentro de alguns ônibus com seu lugar cativo marcado em amarelo. Voltava ao seu quarto e procurava a porta empenada que não se fechava há anos, entreaberta por força

da ação do tempo e da umidade. O cheiro de mofo que percorria já o quarto ficava mais forte com a retirada de uma peça de roupa. Nunca houve um vestido especial, mas o dia quente pedia que pelo menos selecionasse umas cores mais claras, uma sandália que não lhe atacasse o esporão, brincos antialérgicos adquiridos por alguma bagatela e um colar de falsas pérolas. Botava o pé pra fora de casa acompanhada de uma bolsa com suas garrafas de suco e suportada pela convicção que o dia a surpreenderia como sempre, e, se ele não fosse capaz, ela certamente o seria.

Ao passar pela vizinhança recebia os acenos frios de quem a conhecia já há alguns anos, gente que vivia a própria vida mas em determinados momentos era capaz de ouvir o que as paredes das casas de viela diziam, mesmo a contragosto. No caminho até o ponto passava pelo mercado do bairro onde alguns homens ainda se abatiam com a

chegada do dia e buscavam seus remédios diários... o jornal, o café, as conversas sobre o tempo e uma dose ou outra de um destilado favorito, ou necessário. No ponto acendia o seu primeiro cigarro já pensando no café que tomaria na companhia do segundo na

lanchonete próxima à recepção da farmácia popular em meia fração de hora. Entrava no ônibus lentamente, apresentava a credencial que levara décadas para conquistar e se encaminhava ao lugar devidamente identificado e reservado. Dirigia o olhar para as

fábricas, para os carros lá fora, para as pessoas impacientes nos pontos de ônibus e raramente se dignava a responder as trivialidades dos mais carentes que dividiam o mesmo número de décadas vividas ou a preferência do assento. Seu olhar impassível era a certeza do que pensava e a feição larga e afável era apenas um espelho do esteriótipo

bondoso que a idade levava, um contraste que passava despercebido aos menos atentos.

Próxima de sua parada, de dentro do ônibus, observava a fila que teria que enfrentar com seu café e cigarro em mãos, um hábito que geralmente despertava a atenção dos demais pelo incômodo que gerava, porém, a idade trazia o benefício do silêncio alheio em

determinadas situações. Quando chegava a sua vez abria o seu raro sorriso junto com a sua bolsa, retirava novamente sua identidade e algumas folhas com escritos as vezes ininteligíveis e os entregava à atendente. Recebia de volta algumas caixas que logo

substituíam o lugar dos papéis.

Dali se dirigia ao terminal rodoviário do tietê na zona norte de São Paulo, um dos seus locais favoritos e de grande fluxo de pessoas. O anonimato de sua vida simples era ainda mais anônimo ali, não existiam paredes e nem passado capazes de falar, apenas

pessoas aos montes indo e vindo, comprando suas frações de comida para viagem e garrafas d'água, outras esperando, algumas entediadas e outras ansiosas, dominadas pelos relógios digitais. Essas pessoas ocupavam um espaço especial em sua vida, refletiam algo que ela mesmo desconhecia. Se aproximava geralmente de mulheres muito

magras e sozinhas que mostravam mais do que boa vontade de prestar alguma informação. Conduzia a conversa de uma forma simpática e amigável fazendo com que os minutos passados se tornassem quase que vidas passadas. Falava sobre seus talentos, perguntava sobre detalhes dos projetos de suas amizades recentes, família,

trabalho, lazer. Quando sua boca secava depois de horas falando sem parar abria a sua bolsa e retirava uma garrafa de suco e sempre de maneira bondosa oferecia uma outra garrafa que levava consigo para esse tipo de ocasião, não era capaz de tamanha indiferença com quem lhe causava tamanha simpatia. Aguardava alguns minutos e

geralmente não se despedia, pois o cansaço estampado na face de suas amizades fracionadas era mais do que evidente. Saía da rodoviária com um sentimento estranho, um misto de culpa e felicidade, com uma garrafa a menos e uma bolsa a mais.

Quando voltava para casa olhava para o mercado e via os mesmos homens curando o abatimento do dia que se foi, estes bebendo e olhando o noticiário, e ela sabendo que faria parte do remédio de alguém.

Chorinho Inconsequente
Enviado por Chorinho Inconsequente em 20/07/2014
Reeditado em 20/07/2014
Código do texto: T4889746
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