A CARTA

Estava sentada em frente à penteadeira antiga que havia ganhado da avó, olhando fixamente os próprios olhos refletidos no espelho manchado – ah, a velha mania de encostar acidentalmente as bochechas no vidro enquanto passava maquiagem – sem a menor coragem de virar a cabeça para o lado esquerdo. Jamais viraria. Quer dizer, ao menos pelos próximos vinte ou trinta minutos. Ou quem sabe dez?

Sua aflição era tamanha que dos pequenos poros das mãos lhe saíam gotículas quase invisíveis de suor gelado, tornando-as frias e rígidas. E que dizer do rosto? Ora, estava nitidamente corado. Mordia os lábios constantemente, fincando os dentes na carne sem a menor piedade. E se sangrasse? Se sangrasse, certamente não doeria tanto quanto doía sua alma nesta tarde tristonha de setembro. Até este momento ela não sabia ser possível ter dor na alma – e, convenhamos, não era uma descoberta divertida como o vulcãozinho que construiu na aula de biologia na 5ª série. Esta era, sem dúvida, uma descoberta medonha.

Ah sim, o lado esquerdo da penteadeira. Ela evitava virar o rosto pois este era o canto em que repousava misteriosamente a carta que chegara hoje – carta esta que, por sinal, ela evitava mais que a própria morte. Eis que, no ápice de seus estremecimentos e espasmos musculares, sentiu uma fisgada fortíssima na altura do estômago, curvando-se de dor. Ela precisava abrir aquela carta.

Nesse mesmo instante, uma senhora de cabelos brancos, óculos gastos, unhas pintadas de azul, vestido trabalhado num floral deveras retrógrado e sapatinhos marrons se debruçava pensativa por sobre o balcão de sua lojinha de utilidades, lembrando-se da profunda pena que sentiu da mocinha que a tinha procurado na semana anterior. A moça, ela recordava, havia chegado à lojinha com uma feição atordoada, segurando um guarda-chuva amarelo, completamente molhada – chovia torrencialmente. Enquanto contava as moedas do caixa, a mocinha lhe perguntou, afoita, se ela, por um acaso, vendia lápis ou canetas.

“Oh, querida, você me perdoe, mas todos os lápis e canetas foram vendidos...”

“Não acredito! E a senhora teria amanhã?”

“Não, infelizmente. As mercadorias só serão repostas na semana que vem.”

“Semana que vem?! Não, não semana que vem... Semana que vem já será tarde! Céus, por que diabos eu não tenho sequer um toco de lápis em casa? Por que? Semana que vem tudo estará perdido... E, para piorar, esta cidadezinha é tão pequena que não há nem mesmo outro lugar onde eu possa procurar um lápis ou caneta para vender...”

“Oh, moça, mas por que tanta tristeza com a falta de um lápis? Esta inquietude nos seus gestos me comove, porém não há nada que eu possa fazer.” - Disse com os olhos baixos e abalados.

“Será que a senhora não teria um lápis ou caneta para me emprestar? Qualquer um, eu imploro! Um que a senhora use nas contas do caixa, nas anotações da loja...”

A senhora olhou rapidamente para baixo, avistando seu lápis de cor verde água, bem do lado da calculadora. Mas não, não o emprestaria a uma desconhecida. Aquilo era loucura! Era apenas um lápis, é claro, mas era seu lápis. O que de tão importante faria aquela moça com um lápis? Não poderia esperar até semana que vem? Por certo poderia. Mimada! Não o emprestaria. Poderia muito bem emprestá-lo, mas não o faria. Era seu, oras. Tinha ciúmes até de seus ímãs de geladeira, que dirá de seu lápis! Estava morrendo de pena da moça, é verdade! Ninguém poderia lhe acusar de falta de coração. Mas emprestar algo seu era demais.

“Perdoe-me, moça. Eu não tenho.”

“Jura?”

Jurou – fazendo figas com os dedos por baixo do balcão.

A mocinha, então, pegou seu guarda-chuva e dirigiu-se à porta da loja com suas roupas e sapatos encharcados, num ritmo lento e decepcionado.

“Pobre moça” – pensou. “Mas não acredito que tenha lhe causado grande mal com a recusa de emprestar-lhe um simples lápis. Certamente que não”.

Mas fato é que a moça estava curvada na cadeirinha de madeira em frente à penteadeira. A carta estava ali, intacta, porém não tinha coragem de abri-la. Seria ele? Oh, se fosse ele... Não teria mais tempo de lhe explicar o inexplicável. Explicar que naquela cidadezinha ela não possuía um amigo sequer que pudesse lhe emprestar um lápis. Que, na única loja que poderia vender-lhe um, os lápis e canetas estavam em falta. Que nem mesmo a dona da lojinha tinha um para que pudesse usar... E que, sem um lápis ou caneta, seria impossível escrever uma carta. Uma carta pedindo-lhe desculpas por todas as ofensas. Uma carta que chegasse a tempo e o impedisse de partir naquele avião.

Apesar disso, ela se jogou em direção à carta e, com as mãos geladas, tirou-a do envelope e abriu-a com pesar. Era ele. Era ele dizendo que esperou por alguns dias sua carta. Uma carta mostrando-lhe que valeria à pena ficar. Uma carta pedindo perdão pelas ofensas infundadas desferidas contra ele. Mas que, apesar da agoniada espera, a carta não havia chegado. Ele, agora, já se encontrava em outro continente.

No exato momento em que a moça caía sobre o tapete laranja do quarto, em lágrimas, a senhora da lojinha recebia uma nova remessa de lápis e canetas numa caixa marrom.

Dona Iaiá
Enviado por Dona Iaiá em 30/07/2014
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