A Donzela do Inferno

Dias atrás, quando sai do trabalho, passei no bar com alguns amigos antes de rumar pra casa. Bebi um pouco, sorri com os rapazes, ri de suas piadas e fiz algumas também, bebi um pouco mais e segui aos poucos até que tudo se tornou muito. Um dia difícil, passei a maior parte dele imerso na apatia, sem entender o que sentia.

Foi quando, de súbito ali no bar, me vi estranhamente só. Era como se não mais enxergasse as outras pessoas, como se não houvesse uma única voz no ambiente, minha cerveja perdeu o gosto. Mergulhado no nada, abraçado pela melancolia.

Tudo aquilo pedia um uísque.

Quando cheguei em casa, sentei-me em frente ao computador, liguei-o, abri o bloco de notas. Escrevendo, percebi que minhas mãos entendiam muito mais meu coração que minha consciência, os versos fluíram, as estrofes formaram-se e nasceu assim um poema. Fiz uma leitura dele para mim mesmo e... Gostei. Esse foi um dos melhores. Escrever sempre me relaxou, sempre faz eu me sentir como se um pedaço do mar congelado que existe em meu peito desprende-se e derrete. Sou meu maior crítico e meu maior fã.

Era um poema sobre a francesinha.

O título, equiparava minhas lembranças de junto dela as lembranças do meu primeiro amor. Ela merecia isso, pois é a pessoa que me ensinou a amar novamente, depois de tantas outras falharem. De todas, duas lembranças não me abandonaram, por nenhum instante... Uma, dela debruçada em uma mesa de plástico, intercalando o olhar entre eu e o pôr-do-sol, dividindo comigo uma vodca suave. Me lembro dela reclamar, reclamar muito do garoto com quem ficava, estava decepcionada, sentia-se inferior. Já havíamos nos separado aquela altura, mas foi naquele dia que me reapaixonei por ela, estava linda, e sua fragilidade apenas aumentava seu encanto. A outra lembrança, foi de uma tarde que passamos juntos, jogando "Rayman: Origins". Foi um dos dias mais felizes da minha vida, rimos muito, ficamos mais próximos, fomos mais sinceros um com o outro e no fim de tudo, nos beijamos...

Pensar nas brigas e nos fins, é como vislumbrar espaços vazios. É como o aborto. Somos a árvore que não se ramifica, cresce, mas nunca dá flores ou frutos. Somos a promessa que não se cumpre, o sonho que jamais se realiza.

Foi assim até a última segunda-feira do mês. Eu estava em casa, encarando o nada, com minha gata, Jade, dormindo em meu colo. O celular tocou, não exibia o número, a ligação veio de um número bloqueado...

"Alô."

"Alô, Vinnie? Sabe quem está falando?"

"É... Não."

"Eu só liguei pra dizer que achei o poema muito bonito, obrigado."

"... VOCÊ!"

A francesinha, nenhuma outra se não ela. Depois de meses sem nos falar. Ficamos uma hora no telefone. Sentia-me eufórico, lembrava-me dela e ficava feliz, lembrava do fim e sentia raiva, mas estava tomado, ainda sim, pela euforia. Quando ficava ouvindo a voz dela, sorria pra mim mesmo, e vagava a esmo pelo quarto. Senti-me genuinamente feliz. Combinamos, por fim, de jantar juntos, por o papo em dia e acertar as contas.

Fomos ao Burger King, parecia uma viagem no tempo, foi tão divertido quanto nos tempos de outrora.

"Somos sazonais, só nos falamos de seis em seis meses."

"É verdade."

Conversamos sobre diversos assuntos, atualizando as situações. Em todo tempo, eu via aquela mesma garota debruçada sobre a mesa de plástico, no fim de tarde de Paranapiacaba. Vi aquela mesma pessoa, que riu comigo, no meu quarto, naquela tarde. Infelizmente não foi para isso que nos encontramos.

"É difícil esquecer... As coisas que você disse, Rizzie. Como me colocou, como se fosse uma pessoa perigosa que precisava ser constantemente vigiada pra não foder com a vida de ninguém."

"Não sinto que fui injusto, Belle. Você sabe que não é inocente."

"Eu confiava em você, mais do que em qualquer outra pessoa..."

"Eu amava você, como nunca amei outra pessoa. E de tudo que aconteceu, senti-me traído, usado. Mas, me desculpe, não fui bom, fui criança."

"Saiba que eu nunca quis usar dos seus sentimentos."

"Acredito em você. Mas... As coisas são como elas são."

E então, é como se um deserto de desamparo cobrisse tudo que somos, tudo que já fomos, tudo que seremos. Depois de tantos fins e recomeços, é como morrer e voltar a viver, as cicatrizes e circunstâncias da morte estarão sempre lá, maculando o futuro.

Falar assim me deixa espiritual. Sou uma pessoa cética, não sinto que fui abençoado com a capacidade de crer. Fé em mim é raridade. Mas não consigo deixar de pensar em predestinação, ou de que alguma ligação nos prende, como se houvesse um motivo para tudo isso. Talvez, nossa relação seja passageira, e seja nosso destino brigar para compreender um ao outro... Ou talvez nada disso seja real, nunca vamos nos compreender, nos conhecer, vamos precisar morrer, nos encontrar no nosso próprio entardecer e já não dependentes das nossas prisões de carne, possamos ver um ao outro verdadeiramente, etéreos.

Agora, enquanto escrevo, bebo vinho. É propício, vinho me deixa sempre meio triste. Depois de tanto pensar, de remoer isso, eu reúno toda convicção que consigo para dizer a mim mesmo que não é pra ser, nunca daria certo, sempre termina do mesmo jeito... Foi bom ter se desculpado, foi bom ter resolvido o que feriu e o que feria, mas, a conclusão sempre será a mesma: É melhor não ficar perto. Ela não sente minha falta e com o tempo sentirei menos, só sou mais lerdo.

Ainda sim, sou grato por ter vivido as frações de um sonho, dento de um piscar de olhos, um sopro de nós dois. Mais do que apenas a francesinha, você foi a pessoa que eu amei incondicionalmente e tenho pra mim que sempre amarei (de alguma forma).

Você é a donzela do inferno, um pedaço de calor dentro do mar congelado, a última visão de um homem cansado, levando-me até o outro lado, floreando o fim, extinguindo tudo que existe (existiu) em mim...

"Como desejas ver a morte?"

"Como você."

Vinícius Risério Custódio
Enviado por Vinícius Risério Custódio em 02/08/2014
Reeditado em 30/04/2016
Código do texto: T4906329
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