de Moura, o imortal - Histórias do quartel

Foi na época em que meu primeiro nome era soldado quando conheci de Moura. Ele, um militar recém-incorporado ao Exército assim como eu naquele tempo, era um recruta de bem curiosos traços peculiares: em apenas dois meses de aquartelamento, o dito cujo já havia posto terra nos ouvidos com o intuito de protegê-los do estrondo dos tiros de fuzil e costumava banhar-se à fragrância de aloé puro, sem o uso de água, convicto de que desta forma, segundo crença chinesa, estaria imune a todo e qualquer tipo de mal terrestre. Porém, o fato mais inesperado da leviana saga do meu amigo soldado em meses militares ainda estava por vir.

***

Durante uma sessão de instrução sobre fuzis, estávamos sentados no chão de uma sala ampla com janelas grandes e esteiras com nossos armamentos no segundo andar do Palácio Duque de Caxias. Todos os soldados, salvo algumas exceções, estavam excitadíssimos com a singular oportunindade de aprender a desmontar e montar seus fuzis com notável agilidade de manejo do armamento. O instrutor, o Tenente Ferreira, haveria de se lembrar pra sempre da tarde em que quase matou um recruta, acidentalmente.

***

Ainda não éramos soldados efetivados. Todos nós, que, juntos, contávamos duzentos, éramos estranhos à arte centenar de armar e desarmar nossa "namorada", como assim nos obrigava a chamar nosso fuzil o Tenente Ferreira, um oficial que impunha respeito e fazia muitos de nós passar a noite sem dormir, só pestanejando. De Moura, com sua capacidade esplêndida de obedecer todas as ordens e aterrorizado pela imagem do tenente, mal podia fitá-lo que já queria satisfazê-lo antes que o mesmo proferisse uma palavra sequer. A instrução teve seu início após o cessar de um conversa entre o Tenente Ferreira e o Capitão Estrela.

- "Todo mundo põe o fuzil na posição vertical, com a chapa da soleira pra baixo, e senta de frente pra ele", ordenou o tenente. "Presta atenção porque eu só vou explicar uma vez, seu bando de bisonho!".

Todos o olhavam. Os cinqüenta que estavam na sala, uma vez que fomos divididos em quatro grupos devido à capacidade espacial da mesma, prestavam bastante atenção às instruções do Tenente Ferreira. De Moura, temendo seu constante esquecimento repentino, era o que mais se esforçava para armazenar todas as informações dadas durante quase 15 minutos. Periodicamente, notava-se a mão dele adejando o ar para questionar e esclarecer suas dúvidas. Era o único.

- "Essa peça é pra que mesmo, senhor?", perguntou de Moura.

- "Ah!, seu bisonho! Acabei de falar! É pra armazenar os gases que propulsionam o projéctil! O obturador de cilindro de gases é uma peça que requer cuidados: quando a gente tira ela, a mola do êmbolo impulsiona ela pra fora e arremessa ela longe. Então, cuidado pra não deixar ela voar e quebrar. Se o obturador cair, cai junto!".

Após essa afirmação, que era uma espécie de bordão no quartel (como "se o fuzil cair, cai junto!"), algumas risadas abafadas foram ouvidas.

***

O obturador de cilindro de gases localiza-se próximo ao cano do fuzil e é apontado para frente. Na posição vertical na qual encontrava-se o FAL - Fuzil Automático Leve que, diga-se de passagem, de leve só tem o nome -, qualquer descuido com a peça poderia fazer com que ela fosse lançada verticalmente para longe. Assim sendo, após explicar as funções dos demais compartimentos do fuzil e de montar e desmontar lentamente para que todos entendessem o processo, o Tenente Ferreira nos informou que era a nossa vez. Nervoso, como todos os outros estavam, comecei a desmontar quando o Tenente disse "Valendo!". O objetivo inical era desmontar e montar o FAL em menos de um minuto . Todos estávamos concentradíssimos na nossa tarefa e o esforço mútuo nos remetia a um estado de transe, um devaneio, como se o fuzil fosse mesmo a nossa namorada, tendo em vista o zelo que tínhamos para com o mesmo. De Moura, sentado ao meu lado na última fileira logo abaixo da janela, estava igualmente compenetrado, com a sua língua à vista sendo prensada pelos dentes. Pereira, na outra ponta, já apresentava sinais de desespero. R. Morais, ao centro, parecia tranqüilo e começava a montagem, com sua notável habilidade com o armamento. Eu, não portador dessa faculdade, alucinava-me vendo todos os outros em ação enquanto esforçava-me para tirar o retém do ferrolho que insistia em prender na culatra. Quando, por fim, consegui tirar a maldita peça, vi, numa questão de segundos, um objeto passar voando ao meu lado. Um momento mágico, salvo a tragédia que o sucederia. O obturador de cilindro de gases do fuzil do de Moura quicou no parapeito da janela e caiu para o lado de fora da sala. Algumas pessoas notaram quando de Moura se levantou, ciente do seu destino. Sem entender, o Tenente Ferreira o chamou, em voz baixa. De Moura ignorou o chamado e fitou-me. Vi em seus olhos a inocência de um garoto e a coragem de um guerreiro que sabia a hora de enfrentar a morte. Incrédulo, o tenente chamou-o de novo. "De Moura!". De moura olhou para a janela, deu dois passos largos rapidamente em direção à mesma e mergulhou de cabeça, passando por cima do parapeito. "De Moura!", gritou o perplexo Tenente Ferreira, sem acreditar no que acabara de presenciar. Eu, atônito assim como todos os outros soldados, levantei para ir ver o que tinha acontecido com o De Moura, mas o tenente me advertiu. "Mandei levantar, porra?!". Nos sentamos. O Tenente Ferreira debruçou-se sobre o peitoril da janela e soltou um "Caralho!" tão sonoro que nos fez reféns do medo da morte do nosso amigo. O tentente deixou o Sargento Santiago tomando conta do pelotão e pôs-se aceleradamente porta afora.

***

Permanecemos sentados, apreensivos. Uns já esboçavam lágrimas, ao passo que outros, indignação, afinal, de Moura havia se atirado pela janela seguindo as ordens do tenente. Algumas vozes eram ouvidas, mas nada de extraordinário. Parecia que eu tinha sido abruptamente interrompido de um pesadelo e este se tornara realidade. Nunca imaginaria uma atitude tão insensata como a vivida há minutos antes. Nunca ousaria pensar em presenciar um suicídio desta forma. Inconformado, abstraí a situação e embarquei numa viagem sem rumo, as pálpebras fechando. A cena se repetiu: de Moura jogava-se pela janela em busca do obturador de cilindro de gases. Abri os olhos, interrompido pelo ranger da porta que se abria. Por ela, inexplicavelmente, entrava um pálido Tenente Ferreira e um intacto Soldado de Moura. Aturdido pela visão, não sabia o que dizer. Aliás, assim como os demais, não tinha o que dizer. O que iria falar? "Então você tá vivo, de Moura?!" ou "Você não morreu?"? O silêncio falou por si só. O tentente voltou ao seu lugar original, à frente do grupamento. de Moura também voltou à sua posição outrora ocupada, ao meu lado. Boquiaberto, fitei-o nos olhos enquanto sentava-se. Espantado, como se ele tivesse visto outrem indo embora pela janela, me perguntou o motivo de eu o olhar tanto e com tanto pavor. Permaneci mudo.

- "Por que você tá me olhando com essa cara?", perguntou de Moura. "Tá maluco? Parece que nunca me viu! Eu, hein!".

- "De Moura, como?", finalmente falei.

- "Ah, sim! Fui pegar a peça, ué. Aqui ela, ó! Desgraçada quase me matou!". E encerrando o assunto com um sorriso sincero, me mostrou o obturador de cilindro de gases.

***

Após o episódio, num outro dia qualquer enquanto eu descascava batatas, de Moura me chamou:

- "Paes Leme, chega aqui."

- "Fala, de Moura."

- "Lembra do dia da instrução com o FAL?", disse ele, envergonhado.

- "Como eu vou me esquecer disso?"

- "Você sabe que foi um acidente, né? Poderia ter acontecido com qualquer um, ué! Se põe no meu lugar! Sacanagem vocês ficarem me zoando por isso!"

Abismado, abobalhado, aparvalhado e puto, eu disse:

- "Você é muito estranho, moleque."

Preto
Enviado por Preto em 18/05/2007
Reeditado em 26/03/2011
Código do texto: T492039
Copyright © 2007. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.