A abominável Amarante

Não via a hora. Era sempre assim: chegavam as férias e eu ficava ansioso para passar uns dias na casa dos primos. Era uma grande aventura da qual eu não abriria mão por nada.

Embora morássemos no Interior, a cidade era grande para os padrões estaduais, nada comparado com o cotidiano pacato e misterioso que cercava a Vila, que distava cerca de vinte quilômetros de onde morávamos.

Minha tia vivia numa espécie de sítio, na parte alta da Vila, de onde se avistava a linha férrea, que passava ao pé do morro, margeando o rio, onde a molecada passava o dia mergulhando e pescando, às vezes.

O sítio era tudo de bom. Entre as muitas árvores frutíferas, havia jaqueiras centenárias, cajueiros, coqueiros, laranjeiras, mangueiras e frutas tropicais mais raras, típicas da nossa região.

A minha tia morava numa casa antiga, feita de blocos de barro e taipa; uma espécie de barro batido, colocado minuciosamente entre vãos de madeira e cipós amarrados; madeira esta, colhida nas matas próximas, já que a propriedade era cercada de um matagal denso, com morros relativamente altos. Tinha também a casa de farinha, onde nos fartávamos com os beijus, tapiocas, bolos de aipim e farinha de mandioca quentinha, feita na hora. É Certo que as vezes também ajudávamos a ralar a mandioca e a mexer a farinha no forno quente movido à lenha, quando os mais velhos deixavam. Jogávamos bola nos campos improvisados embaixo das árvores. Catávamos castanhas de caju para assar no tacho quente, quando era a época. Subíamos nas arvores, entre outras traquinagens. Não constantemente, pulávamos o muro do cemitério, corajosos e temerosos ao mesmo tempo. Não tinha falado ainda, mas, o pequeno cemitério branco, da Vila, ficava bem nos fundos da propriedade da minha tia. Isso criava o clima perfeito para as estórias de assombração que se ouvia no lugar.

Os avistamentos de visagens e almas penadas eram constantes, e os relatos; deliciosamente assustadores.

Entre uma estória e outra de assombração; caipora, saci, lobisomem, entre outras, havia uma que nos fascinava, por parecer a mais real de todas: a Amarante.

Se, durante o dia, traquinávamos bastante, a noite, ficávamos apreensivos e fascinados quando íamos a casa de tia Marocas.

Tia Marocas morava a cem metros da casa da minha tia. Era uma senhora branca, com idade avançada. Nunca casara, nem tivera filhos. Tinha um problema nas pernas que a fazia andar bem devagar, segundo ela, causado por uma injeção mal aplicada, quando ainda era jovem. Sua pequena casa feita de taipa, rodeada de árvores, tinha ao seu lado esquerdo um frondoso pé de seriguela que sombreava um terreiro limpíssimo, bem varrido, com folhas de dendezeiro. Ficávamos sentados em tamboretes de madeira, arrumados minuciosamente na pequena sala de terra batida. Tia Marocas começava a contar as estórias, sempre ricas em detalhes, todos com os olhos fitos, respiração acelerada, lá estávamos, ouvindo os terríveis feitos da Amarante. Um ser misterioso que vivia trancado num dos quartos da pequena casa e que ela jurava existir.

- Ainda me lembro do dia - dizia ela - quando a Amarante devorou meia dúzia de gatos que perambulava pelo quintal...

- É mesmo, tia Marocas? conte a gente como foi, conte!

- ... Ah, isso aconteceu faz muito tempo, vocês não eram nascidos ainda...

E assim, sentada no banquinho, segurando a sua bengala, ela relatava a estória, enquanto o candeeiro nos iluminava num clima de medo e magia.

Tinha dias que nós queríamos ver a Amarante de qualquer jeito.

- Deixe a gente ver a Amarante só um pouco, vai, tia Marocas. Ficávamos Pressionando e insistindo tanto que as vezes ela ficava brava conosco.

- Vocês querem que a Amarante pegue vocês? eu não me responsabilizo; há dias que ela não sai para comer bicho nenhum. Se quiserem eu abro a porta, vocês é quem sabem. Depois desse argumento nós ficávamos quietinhos, ninguém queria correr o risco de ser devorado por uma Amarante faminta.

Havia também os dias de chuva. Nessas noites de tempestade, as estórias pareciam ficarem mais tenebrosas. Os trovões e os relâmpagos eram os coadjuvantes dos nossos medos mais sombrios. A cada clarão do relâmpago ou estrondo da trovoada, tínhamos a impressão de ouvir algo que vinha dos fundos da casa e gelávamos de medo.

- Quando está chovendo desse jeito, a Amarante fica agitada, mas não se preocupem, ela se acalma assim que a chuva passar - tentava nos acalmar tia Marocas.

O vento balançava as árvores e soprava tão forte, que as vezes, entrava uma corrente de ar pela fresta da janela e apagava o candeeiro. Pacientemente, tia Marocas levantava-se apoiada na sua bengala e ia passo a passo, tateando até o fogão de lenha apanhar o fósforo, que devia estar em algum lugar que só ela sabia. Nesse meio tempo, tudo escuro, só os clarões do relâmpago faiscando, nós ficávamos com mais medo ainda e tentávamos uma estratégia:

- a senhora quer que a gente te ajude a achar o fósforo, tia Marocas? - perguntávamos, só a fim de não ficarmos esperando na sala.

- Não meninos, é melhor vocês ficarem aí sentados, se esqueceram da Amarante?

Nós não tínhamos esquecido não. Só não queríamos ficar sozinhos no escuro.

Finalmente, depois de um tempo que certamente ela valorizava; fósforo encontrado e candeeiro aceso, continuávamos ouvindo as terríveis estórias da Amarante, que no nosso imaginário deveria ser uma criatura peluda com dentes enormes e garras afiadas, pronta a devorar quem se aproximasse.

E, assim, iam-se os dias e as noites das minhas férias na casa dos meus primos. Entre estórias fantásticas e aventuras sem igual, restou-nos a saudade de um tempo que não volta mais, mas que ficou registrado nos arquivos do coração.

Tia Marocas passou dos noventa anos e partiu. Certamente, sempre nos lembraremos dela e das suas estórias maravilhosas que muito enriqueceu a nossa história.

Quanto a Amarante, nunca mais ouvimos falar dela.

Talvez tenha ido embora, como a tia Marocas.

Ou, quem sabe, esteja vivendo num quarto pequeno de uma casinha qualquer, que tenha ao seu lado esquerdo um frondoso pé de seriguela a sombrear o terreiro limpíssimo do imaginário de outras crianças.

Como as que fomos um dia.

Edson, Set./2014