A sua graça

Tinha um nome incomum. Desde os áureos tempos de criança, não entendia por que seus pais lhe haviam posto um nome tão ridículo. Era motivo de chacota entre os coleguinhas de classe nos primeiros anos da escola. Chorava de vergonha às vezes, quando a professora, na hora da chamada, repetia o seu nome insistentemente, já que ele, envergonhado, recusava-se responder a presença.

Na adolescência, aí sim, foi um verdadeiro suplício. Aquilo perdurava da mesma maneira; era o alvo preferido das piadinhas nas rodas dos rapazes e moças que se formavam nos corredores da escola. Às vezes tinha vontade de revoltar-se, perder as estribeiras mesmo, partir para cima, dar sopapos em uns e outros. Mas, pensando bem, do que adiantaria; ficaria suspenso e o seu ridículo seria ainda maior já que perceberiam com maior nitidez que isso o incomodava. Por isso preferia o silêncio, o sofrer calado. Então, resignado, fingia que não escutava as afrontas.

No meio de todas essas inconveniências, havia uma válvula de escape: um amigo. Sim, Janinho era um amigo de verdade, desses que te defendem com unhas e dentes. Amigo leal, companheiro, que topava qualquer parada. Janinho era a sua voz silenciosa clamando por justiça.

- Não ligue pra eles, Téo - dizia o amigo - se você quiser, eu vou lá e pico a mão na cara desses sem-vergonhas duma figa.

Se ele quisesse, Janinho ia mesmo, era um grande amigo, o único que ele tinha.

O tempo passou. A infância se foi e a adolescência também, com todos os seus aborrecimentos e intempéries. Veio a vida adulta, repleta de problemas e êxtases da vida moderna: trabalho, estudos, paixões(mal resolvidas), novos amigos, planos para o futuro e a sombra companheira e aterradora do seu nome a lhe atormentar.

A vida madura se mostrava menos perturbadora, mesmo sem descartar os constrangimentos relativos ao seu nome, do qual, às vezes, ele era vítima. Mas, de certa forma, até que ele se saia bem.

Houve uma ocasião em que, devido a uma classificação resultante de um concurso cultural de que participou, ele se utilizou de um pseudônimo, o que gerou um transtorno danado na hora de se identificar para os organizadores do evento. Só depois de muitas explicações e alguns risinhos abafados, tudo terminou bem. Apesar de tudo isso, a vida transcorria normalmente, mas ele só não conseguia lidar com a sua irreparável perda...

Conhecera alguém que parecia ter saído do mais elaborado conto de fadas. Pensou que toda a sua lida, toda a sua amargura e todo o seu desfavor tivesse finalmente acabado quando o destino a fizera cruzar o seu caminho. Samara era uma criatura adorável, fazia pouco tempo que tinha terminado os estudos e se preparava para o mercado de trabalho. Foi quando se encontraram pela primeira vez.

O relacionamento aos poucos foi tornando-se intenso a medida que se conheciam melhor. Mas, ao mesmo tempo, se complicava, porque ele insistia em não revelar o seu nome verdadeiro, por puro constrangimento.

- Por que você não me diz o seu nome de uma vez - dizia ela - eu não posso ficar lhe chamando de Téo o tempo inteiro.

- Ah, meu bem, o meu nome é tão absurdamente ridículo que eu quero lhe poupar de algum desconforto...

- Mas Téo, isso não tem nenhum cabimento, nós vamos ficar noivos! Temos que ter uma relação confiável, senão teremos problemas.

De nada adiantava as constantes queixas da moça. Aquilo tinha se tornado uma ideia fixa do rapaz, uma verdadeira obsessão. Imagina ter que lhe revelar o seu verdadeiro nome, com certeza ela o abandonaria logo em seguida; era preferível que as coisas continuassem como estavam.

Mas as coisas não ficaram como deveriam. Com o passar do tempo, o que era uma coisa boba, sem muita importância, tornou-se o estopim para discussões e brigas constantes a ponto da moça abandoná-lo. Ele não esperava por isso. Tentou de todas as maneiras uma reconciliação, corria atrás dela pedindo perdão, implorava para que ela reconsiderasse; mas nada adiantou, ela estava determinada na sua decisão.

O que se seguiu foi uma depressão devastadora. Ele perdera todo o ânimo, todo o vigor, a sua vontade de viver esvaiu-se como o escorrer de águas por entre os dedos. Deu-se à bebedeira, mal se alimentava; abandonara o emprego. Dos poucos amigos que tinha, isolou-se completamente.

Não bastava ter ele o fardo insustentável de carregar o seu nome espectral? - pensava - agora perder o seu grande amor por conta do seu orgulho insubmisso, da sua teimosia desvairada. Era algo que ele não deixaria barato. Decidiu-se: daria cabo à vida.

Nos dias que se seguiram, ele se ocupou tão somente das minúcias referente à sua empreitada em cometer o ato fatal. Percorreu a cidade procurando lugares ou situações que o fizessem partir deste mundo, que o "rejeitava implacavelmente".

Quem sabe, talvez, atirar-se debaixo de um caminhão ou um ônibus, num dos cruzamentos mais movimentados. Não, isso chamaria muita atenção; seria muito trágico e dolorido. E se não morresse de imediato? Com a sorte que tinha era melhor não arriscar. Pensou em beber algum veneno... Não, não tinha coragem! Foi quando lhe ocorreu uma ideia: um viaduto. Sempre temos um viaduto, ainda bem! Escolheria um sobre o rio. Um voo certeiro sobre as águas poluidíssimas, isso bastaria para partir.

Tudo acertado. Local escolhido; preparou-se silentemente. Nada de despedidas. Os amigos saberiam, e certamente compreenderiam os seus motivos. Esperaria o cair da tarde. Não haveria hora mais apropriada para um desfecho tão épico.

Caminhou pela cidade como quem a via pela primeira vez. Passos lentos, mas decididos, observava as primeiras luzes se acenderem, quando chegou ao local determinado. Ventava um pouco mais que o normal, talvez um prenúncio de chuva para aquela noite. Não teve dificuldade para escalar o alambrado que separava a pista, da armação de aço do viaduto. Com algum esforço, conseguiu esgueirar-se até uma abertura na estrutura de aço. Respirou fundo, abriu os braços e quando ia deixar-se cair, o vento lhe fez bater na cara uma página inteira de jornal.

Que hora mais inconveniente para uma coisa dessas! - pensou.

Meio aborrecido, abriu a página e deu de cara com a seguinte manchete:

"Nos últimos anos, aumentou consideravelmente o número de cidadãos que trocaram de nome no Brasil".

Aquilo foi como se um raio o tivesse atingido. Imediatamente procurou se agarrar na estrutura de aço, tremendo. Como pôde ser tão estúpido! Por que nunca pensou nisso antes?

Certamente, isso era um sinal de que nem tudo estava perdido. Afinal, o mundo não era tão cruel como parecia.

Saiu do viaduto tão rápido e animado que, alheio a movimentação do trânsito no horário de pico, foi atropelado por um veículo ao atravessar uma rua.

Houve luzes, sirenes, vozes e gritarias. Logo, se achou numa maca dentro de uma ambulância de resgate. Doía muito! Apesar das escoriações, meio sonolento, escutou alguém dizendo que apenas tinha quebrado as pernas. Como estivesse sem documentos, teve a impressão de ouvir um dos paramédicos repetir, momentos antes de desmaiar:

- Qual é mesmo a sua graça?

Edson, Out./2014