O amor, a fome e a paixão.

(...)

- Veja bem, o Horácio. Ele era um ser humano brilhante! Mais brilhante do que qualquer um fora capaz de ser, porém, havia apenas um problema - bem peculiar, por sinal. Ele era apaixonado pela sensação de estar apaixonado, e comumente buscava amores impossíveis e isso, obviamente, o consumia.

- Mas que mal há em se apaixonar? Não sei porquê o recrimina tanto. Até parece que era pecado! - A morena riu com as palavras da pequena cujos olhos brilhavam como dois diamantes reluzentes, banhados pelo frescor da aurora, brilho este que descia por seus longos fios loiros, causando inveja aos raios dourados do próprio sol.

- Amar não é pecado, entenda... - Fez uma pausa enquanto o pincel escorregava pela tela, tingindo o branco vazio com sua cor berrante, o azul tecendo uma cascata, roubando a cor de oceanos profundos. O olhar da menor acompanhava o trajeto da mão firme de sua irmã mais velha, enquanto esperava pacientemente pelo ensinamento que estava por vir.

- Amor não é paixão, e paixão não significa ter, exatamente, um afeto, apreço, respeito. Paixão é euforia, desgaste, correria. É uma sensação fugaz, repentina e que necessita ser saciada. - Entre suas palavras e devaneios a tela ia ganhando vida, e a pequena com fios de ouro ficava dividida entre atentar-se as palavras, ou a união harmônica de cores e formas que aquele simplório pincel formava.

- Falando assim até parece fome... - Ponderou sabiamente, Runya, levando aos lábios a maçã que havia colhido momentos antes. A mordida foi dada com todo o cuidado possível, ela gostava de sentir a forma que seus dentes, a maioria em fase de mudança, eram cravados na superfície dura, que logo se tornava macia e suculenta, espalhando doçura por todo seu paladar, ainda que houvesse uma sensação levemente amarga, talvez da casca. Ela teria que morder novamente para saber. Anne a observava com curiosidade, a menina parecia estar provando algo divino, tamanho era seu cuidado e expressão de satisfação ao degustar a fruta, e após respirar fundo concluiu seu pensamento a cerca de Horácio, seu padrinho.

- Bem, de fato é uma fome, mas uma fome que nunca tem fim. Creio que estaria mais para a gula. E isso é algo que pode matar. - O pincel foi descansado sobre o suporte e ela juntou as mãos acima da cabeça, esticando o corpo ao máximo a fim de se espreguiçar, mas parou o movimento ao ver a expressão de perplexidade sobre a face de sua irmã mais nova.

- Quer dizer... Que isso é o que chamam de morrer de amor? - A pequena empalideceu, e o sorriso que moldou os lábios da morena era de pura compreensão e carinho, ao que ela repousou a destra sobre os cabelos macios da menor dizendo:

- Não, Runya. Por amor não se morre, se vive. Amor é vida, a vida vem do amor, ora! É assim que nós nascemos! A paixão é que é de matar, afinal, é uma doença. Então... - Fez uma leve pausa enquanto se abaixava para ficar com o rosto rente ao da menina e só então prosseguiu.

- Ame. Ame com todo o seu coração. Com a sua voz, com as suas mãos, com o seu sorriso, com seus olhos, ame até com a sua respiração. Apenas ame. Ame tudo! A cor, o som, o silêncio, o tudo o nada. Porque o remédio para essa doença chamada paixão, essa que consome, tortura e enlouquece... É apenas o amor... - Ao se levantar, talvez a pequena não tenha notado, mas os olhos de Anne estavam marejados, e uma lágrima riscou sua face ao fitar a paisagem criada em seu quadro, era o seu mundo ideal, seus sonhos, tornados realidade e eternizados numa tela branca que agora se via irreconhecível, repleta de cores sortidas.