O Parapeito

Sentar no parapeito não era exatamente uma boa ideia (e o que ultimamente tinha sido uma boa ideia?). Havia chovido torrencialmente naquela tarde e ele deixara a janela do quarto aberta, o que acabou por quase alagar a casa. O cheiro dos móveis molhados (e do colchão que não secaria completamente tão cedo, principalmente se considerasse o fato de que o sol não aparecia há dias) tornava impossível a permanência lá dentro. Impossível. Deixou o apartamento, trancou a porta, subiu as escadas até o terraço. Mas a lua... Ela estava tão linda. Chorosa, enorme, amarelada. Aparecia acanhada por entre as nuvens, no pequeno espaço de céu aberto que se podia ver naquela noite. Umas duas ou três estrelas, a lua e só. O resto eram apenas nuvens escuras e relativamente baixas, que pareciam se mover lentamente para o lado em que o vento batia. O vento era forte, devo dizer.

Escondeu parte do rosto por trás das pontas do casaco e foi caminhando devagar até o parapeito. Quando suas mãos o tocaram, estremeceram levemente – estava gelado e um pouco molhado ainda. Fitou por alguns minutos a cidade. Meu Deus, como estava bonita! As luzes brilhavam forte, oscilavam. Ouviam-se, ao longe, buzinas e pessoas falando. Prédios e mais prédios emaranhavam-se na paisagem, de modo que quase não se podia distinguir um do outro. Eles pareciam se entrelaçar, tornando-se um único rio de concreto espalhado sobre o asfalto. Fechou os olhos, sentindo o vento no rosto. Sentar no parapeito não seria uma boa ideia? Acho que sim. Debruçou-se sobre ele, jogou as pernas para cima e apoiou as mãos.

Enquanto estava ali, solitário no topo de um dos milhares de prédios da cidade, sentiu-se como uma formiga numa colônia. Que era, afinal, uma única formiga numa colônia? Mais uma formiga, apenas. Pensou que, talvez, não gostasse de ser uma formiga. Começou a encarar um lugar, lá embaixo, de onde as luzes pareciam piscar mais fortes. Um bar, talvez? E havia também outro, a uns quatro ou cinco quarteirões daquele (se é que era possível calcular distâncias da altura em que se encontrava) em cuja frente se via um cordão de carros estacionados. Se se concentrasse bem, conseguia ouvir, em meio àquele aparente silêncio que experimentava, risadas e gritos eufóricos vindos de algum lugar. Conseguia imaginar que, lá embaixo, provavelmente, as pessoas tomavam cerveja em um boteco mal cheiroso e compartilhavam com outras seus desafetos e alegrias quotidianas. Que um casal, sentado num capô de carro, trocava beijos enquanto a garota, apressada, tateava pelas entradas do cinema na bolsa. Que um garçom explicava pacientemente (porém já cansado) para um homem anojado a diferença entre dois vinhos da carta vermelha que segurava nas mãos. Que um grupo de cinco amigos discutia sobre algo aleatório, enquanto tomavam café. Que alguém estava rindo até quase perder o ar. E que, a duas esquinas dali, outra pessoa chorava como se não fosse conseguir parar nunca mais. Que, enquanto alguns erguiam copos para o ar, outros os quebravam contra a parede. Que uns dormiam, outros brigavam. Que, no mesmo instante em que alguém dizia “sim” diante de um altar, dois namorados trocavam ofensas embaixo de um guarda-chuva.

Todos, lá embaixo, estavam vivendo. De alguma forma estavam. Independente de estarem felizes, ou tristes, ou nervosos, ou assustados, ou surpresos, ou ansiosos. Estavam todos, de maneiras diversas, experimentando um capítulo da loucura diária. Até porque não existia nada, infelizmente, que pudesse garantir àquele que estava às gargalhadas naquela noite que ele não levantaria aos prantos no dia seguinte, em meio aos lençóis amarrotados da cama. De contrapartida, também não existia nada naquele emaranhado de prédios que pudesse impedir que quem quer que estivesse chorando naquele momento, acordasse com infinitos motivos para abrir um sorriso na outra manhã. Felizmente.

E ele permaneceu ali por horas, sentado no parapeito, olhando profundamente a cidade e se concentrando em imaginar histórias. Contanto que nenhuma o tivesse como protagonista, é claro. Nada aconteceria com ele se permanecesse ali, ou dentro de seu quarto molhado. Ali, aconchegado nas colchas macias e confortáveis de absolutamente nada, nunca choraria (mas também jamais sorriria). Imaginou o que aconteceria se ficasse em pé sobre o parapeito. Provavelmente escorregaria e cairia dali. Mas, não. Ele queria se matar. Estava decidido quanto a isso.

Então se levantou, pulou para dentro do terraço novamente e se dirigiu, com parte do rosto por trás do casaco, de volta ao seu apartamento.

Dona Iaiá
Enviado por Dona Iaiá em 08/11/2014
Código do texto: T5027680
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