Anedonia

Ele acordou naquele dia nublado com o qual se identificaria por toda sua vida de pão branco. Levantou-se no horário de sempre. E as horas eram água da pia que escorria por suas mãos pálidas e calejadas. Caminhou até o guarda-roupa e pegou seu terno (quase de madeira) preto. A alegria de ficar olhando para o seu lindo aquário no meio da sala não lhe seria dada até o final da semana, que acabara de começar. Como de costume, tomou um banho demorado, pois só iria trabalhar dali a 3 horas e teria tempo suficiente para tomar seu café com leite com bolacha água e sal, pois estava de dieta e de mãos dadas com a moderação. O jornal sobre a mesa trazia todo tipo de notícias, mas seu foco eram os obituários e as sangrentas páginas policiais. Do horóscopo queria distância, pois dele tinha apenas noção de seu saturnino signo, com ascendente saturnino e tudo mais. Às vezes era dado à esquisitices, sem soltar a mão da sobriedade. Então, rumou para o trabalho que durante muitos anos era feito com máquina de escrever, mas que, por pressão da querida tecnologia, era realizado atualmente num computador de última geração, ao qual ele, no começo, apelidou de elefante branco. E seu dia se seguiu como a rota de um planeta que gira em torno do sol por 29 anos. A lentidão daquele escritório não o sufocava. Era algo a que já estava acostumado há anos. A emoção de ver seu trabalho reconhecido também não o acompanhava. E há muito ele percebera que tinha excelentes colegas de trabalho, mas pouquíssimos amigos e esses, por sorte, lhe eram fiéis. Ele queria se libertar, mas não sabia de que. Queria gritar, falar, mas sua voz cansada não saía mais. Era como se a vida estivesse fugindo dele. Até que naquele dia o que o sufocava cumpriu seu papel. Logo não teria mais alguém naquela velha cadeira, nem naquela antiga matrícula. Logo aquela casa seria residência de ácaros e orbes, já que a energia dela era baixa o suficiente para isso. Logo o que era 29 se completaria pela segunda vez e os quase 60 anos seriam comemorados naquele janeiro de calor infernal. E ao deixar o escritório percebeu que o dia não estava mais nublado, então ele deu um sorriso de dever cumprido, entrou no seu carro preto e voltou pra casa. No caminho, a vida lhe passava diante dos olhos como nunca antes. Reminiscências mil e seu coração (que ainda batia) ia ficando apertado, como se sentisse a dor da despedida. Então, como morava perto do mar, resolveu ir à praia e observar aquelas ondas que iam e vinham, assim como a vida e seus altos e baixos. Aquilo o acalmou e ele voltou ao seu estado letárgico. Sem maiores excitações, ele virou as costas, voltou para o carro e finalmente foi para casa. Lá ele comeu sua comida preferida (o que era incomum, pois estava de dieta e esse luxo era de finais de semana), tomou um banho bem quente e relaxante, assistiu um pouco de TV e foi se deitar. E morreu depois de morto.

Tom Cafeh
Enviado por Tom Cafeh em 15/11/2014
Reeditado em 28/10/2016
Código do texto: T5036405
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