Empoleirada no leito

O dia a dia de Lenita era de penosa labuta, conquanto absoluta. Ensinava francês no ginásio estadual da Velha Serrana, para adolescentes, e adolescentas - se formos pelas formas e normas das recentas presidentas...

Mas os anos eram bem antes dessas imperiosas e horrorosas flexões, eram os sessenta, antes até de se proclamar a gloriosa - que nos foi tão dolorosa. O livro adotado por Lenita era Le Français au Gymnase, volumes um e dois, com ênfase nos rudimentos da gramática e língua e alguma introdução à cosmologia voltaireana.

Le cahier, le crayon, le stylo e pouca coisa mais restou, senão o apelido pouco carinhoso que a mestra ganhara de sua alunagem: le Pupitre, fazendo-se aquele inefável biquinho com o u, que virava um imponente e alongado i. E, impiedosamente, pegou, sem que se saiba ao menos, teria gostado do galicismo que lhe fora imputado.

A profundidade do conhecimento francófono de Lenita era de mais difícil averiguação. O que se sabe, e que aqui cabe, é que ninguém mais na Velha

Serrana havia ido além do ensinado naqueles dois anos ginasiais. E as relações estrangeiras do velho burgo serrano, encastoado no mais profundo interior das Gerais, limitavam-se à presença de uns gatos pingados descendentes de alemães e italianos, a um vulgo Zé Espanhol e a um outro Zé Inglês, cujas origens se perdiam nas névoas do tempo. Exceção se deve fazer, contudo, ao mestre de inglês, um reputado e respeitado professor doutor Waldemar e ao pároco da cidade, o Padre Guerino que, por ossos do divino ofício, vivia gastando seu latim.

Voltemos a Lenita, que tanta memória ainda precipita. Um belo dia, pintou na cidade um visitante francês. Possivelmente interessado em algum negócio com a fábrica de tecidos ou, quiçá, em descobrir as virtudes turísticas do lugar, cuja origem é associada às pioneiras investidas bandeirantes em busca do ouro das Gerais. Coisa do final do século dezessete, que o coloca no patamar de uma Ouro Preto, São João d'El Rei, Mariana e umas outras mui poucas eleitas.

Como o misterioso visitante não conhecia bulhufas desta nossa inculta e bela flor do Lácio, alguém veio com a redentora idéia de se convocar Dona Lenita às pressas para fazer a imprescindível ponte.

Seu Nozinho, marido de Lenita foi quem lhe levou o alvissareiro convite. E o mesmo que retornou com a triste nova de que a mulher se encontrava empoleirada no leito, com grave enfermidade. Incapaz até de se mover.

E foi o francês embarcar no primeiro trem disponível para a milagrosa recuperação de Lenita se tornar possível. Crível?

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 16/11/2014
Reeditado em 16/11/2014
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