A tia e a pia

Tia Rita estava toda contente com as reformas da casa, que ia fazendo paulatinamente, com a ajuda das irmãs solteironas. A mais recente aquisição era a pia da cozinha, lisinha, de cimento, um portento.

O asseio, que era a regra na casa, angular esteio, ganhou realce com aquele brilho, que a todos os parentes e visitantes Tia Rita fazia questão de apresentar e de ver aprovar.

Quando chegou de visita, bem rara que fazia, o primo Concesso, confesso, não foi poupado daquela primazia. Concesso, que vinha da Pedra do Indiá, trazia consigo a irmã Dica, viera à Velha Serrana para uma breve estada, e

rever toda a parentada.

Tudo bem transcorria, em meio a tanta mútua cortesia, até que um dia, quando bem cedo se levantara Rita para passar o café e, na cozinha, foi topar com o primo, em pleno uso daquele mimo: escovava a dentadura, com toda a candura, sobre a pia da Tia, aquela belezura...

Tia Rita, com tanto nojo no bojo, por polidez, lívida tez, nada fez. Mas foi como uma súbita viuvez. Esperou o primo embarcar no trem, e mais que urgente, fremente, em nenhum momento hesitou: a pia por outra nova trocou. E estou que rezou, para que o primo não mais voltasse. Graça que alcançou.

O que não alcançara contudo - e para a paz maior de consciência - fora chegar à cozinha dois minutos antes para flagrar o asséptico primo Concesso descarregando toda a liquidez

dos países baixos, de maior urgência … antes de passar à escovação da dentadura…

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 30/11/2014
Reeditado em 09/09/2022
Código do texto: T5053742
Classificação de conteúdo: seguro