João e Luzia - O dia da Luzia

O dia da Luzia

Ainda estava escuro quando Luzia abriu os olhos. A luz do dia ainda acanhada dava seus primeiros sinais penetrando entre as tábuas do seu barraco. Encolhido ao seu lado jazia o corpo de João, enrolado no pano nojento dormia como uma criança. Exalava aquele fedor típico da cachaça que denunciava o porre da noite anterior. Pelo menos não me incomodou esta noite, pensou, enquanto se levantava e corria para fora do barraco para lavar o rosto com um copo d’água.

Rapidamente tirou o farrapo que cobria seu corpo, vestiu o único vestido que possuía e saiu de casa. Caminhou apressadamente ladeira abaixo pela rua ainda silenciosa. O dia estava amanhecendo e ela precisava correr para chegar a tempo de fazer o café da patroa.

Todo dia era assim, Luzia não pegava o ônibus, preferia acordar mais cedo, caminhar alguns quilômetros a mais para economizar o dinheiro que era muito mais importante. O arroz, o feijão e carne custavam o olho da cara e ela não podia se dar ao luxo de andar de ônibus. Pelo menos se o João não bebesse tudo de cachaça...

Uma hora depois, Luzia chegou à casa da patroa. Silenciosamente se esgueirou pelo portão dos fundos, alcançou a porta da cozinha e entrou. Como sempre a pia estava entulhada de pratos sujos, panelas e bandejas gordurosas. Ali mesmo Luzia abriu a sacola, tirou uma roupa velha e vestiu-a. Cuidadosamente guardou o único vestido que se prestava para andar na rua em sua sacola e em seguida se aproximou da pia, abriu a torneira e imediatamente a água gelada feriu suas mãos enquanto ela eliminava com a esponja gordurosa os restos de comida da noite anterior.

Minutos depois, com a pia em ordem, Luzia pôs água para esquentar e logo estava preparando o café da manhã. Resolveu cozinhar algumas bananas da terra, cortou em rodelas, jogou-as dentro da panela com água e um pouco de sal e colocou sobre o fogo tendo o cuidado de antes passar a mesma esponja por sobre o fogão. Abriu a porta do armário e resolveu fazer um cuscuz. Havia manteiga, pães e ovos para fritar e achou que isso seria o suficiente. Com o café coado e adoçado, bateu o suco no liquidificador quando achou que já estava na hora de acordar os moradores da casa.

Aos poucos os moradores começaram a dar sinal de vida. Como sempre a primeira a levantar-se foi a patroa. Apressada, chamou pelo marido e depois pelos filhos e correu para o chuveiro. Luzia foi até o quarto dos meninos, balançou-os até acordarem, deu banho no mais novo e enquanto outro se banhava separou o seu uniforme e ajudou o primeiro a vestir-se. Dentro de poucos minutos estavam todos tomando o café, e pouco depois entravam no carro partiam deixando Luzia só com algumas recomendações. Fazer o almoço, limpar a sala, arrumar os quartos, etc. etc. e etc.

Então, ao ver todos partirem, Luzia se sentiu uma verdadeira rainha. Sentou-se na cadeira mais confortável, escolheu um pedaço grande da banana da terra, descascou e untou-a generosamente com a manteiga. O cheiro bom da manteiga e da banana ainda quente encheu suas narinas. Em seguida levantou-se fritou um ovo com a manteiga e jogou sobre um pedaço de cuscuz que havia colocado em seu prato, e só então ela achou que a vida podia ser boa. Um dia vou ter tudo isso na minha casa, pensou.

Satisfeita as suas necessidades e devaneios, Luzia levantou-se e foi cuidar dos seus afazeres. Juntou todos os pratos e talheres sobre a pia, limpou a mesa, enfeitou-a com um pequeno pano bordado disfarçando a mancha de óleo. Arrumou a cama dos meninos, abriu a janela para arejar o lugar, catou os brinquedos, juntou as sandálias espalhadas pelo chão, passou rapidamente a vassoura e deu por concluído a arrumação do quarto dos pequenos. O sanitário ficaria para a parte da tarde.

Com a mesma rapidez, Luzia deu conta de arrumar o quarto do casal e sala da casa. Juntou o lixo da lixeira, colocou o saco com os dejetos na porta da rua. De volta a cozinha, começou a avaliar a despensa e planejar o almoço da família.

E foi assim todo o resto do dia, Luzia sabia que logo voltaria pra aquele inferno pra enfrentar a cachaça do João. Um dia largo aquele vadio, pensou.