O sorvete de Palito

Minhas aulas começavam as quatro da tarde. O sol ainda quente do fim de verão provocava e conspirava. Aquele dinheiro que meu irmão me deu no dia da despedida, acomodado no fundo do bolso da minha calça comprida queimava as minhas mãos quando eu via outros meninos caminhando para cima e para baixo chupando aquela tentação. Era o sorvete de palito. Embora na Bahia se chamasse picolé, aqui em Mauá era sorvete de palito. Na verdade eu jamais havia provado um, mas sabia-se que era delicioso. E aquele dinheiro era mais que suficiente, aliás, daria para chupar várias dezenas de sorvetes, mas é que meu irmão me dissera para guardar para um caso de necessidade...

Durante semanas resisti bravamente à tentação. Via todos os dias os meninos correrem para o barzinho da esquina e comprar aquele objeto delicioso e chupar sem me oferecer nem uma vez sequer. Uma vez, só uma vez me aventurei a pedir para um coleguinha: - Deixa eu dar uma chupadinha? Mas ele sem ligar para a minha angústia me respondeu me mostrando o dedo médio: - Aqui, ó. Se você quer, compra o seu.

Assim eu não tive outra alternativa, embora soubesse que estava fazendo tudo errado, embora soubesse que aquele dinheiro tinha uma finalidade muito mais nobre eu acabei sucumbindo a tentação.

Foi durante o período de recreio. Corri para o barzinho e parei diante do balcão. Me dá um sorvete de palito? Murmurei. - São vinte centavos, disse o homem espichando a mão para pegar o dinheiro. Reunindo toda a minha coragem, peguei o dinheiro do bolso e entreguei na mão do homem. Ele olhou para a nota e exclamou: É muito dinheiro, você não tem miúdo? É claro que eu não tinha, se tivesse não teria sofrido tanto e nem tanto tempo. Ao perceber isso o homem disse indignado: Espera um pouco que eu vou trocar; e sumiu sem deixar vestígio. Os minutos que passaram pareceram horas. Mil ideias se passaram pela minha cabecinha. Será que ele fugiu com meu dinheiro? Será que vou ficar sem o dinheiro e ainda sem o sorvete? Não, com certeza não era esse o caso, pois o balcão gelado com os sorvetes estavam ali para garantir. Então por que a demora? O recreio estava para terminar quando o homem reapareceu. Me passou de troco um monte de dinheiro que formou um volume enorme no meu bolso. Assim fiquei com dois problemas, um volume para esconder no bolso e um sorvete gelado na mão sem tempo para desfrutar, pois o recreio havia terminado.

Enfiei o sorvete na boca disposto a dar conta dele rapidamente. Olhei para o portão do colégio que naquele exato momento estava sendo fechado. Corri em sua direção sem poder gritar com o picolé queimando a minha boca, mas já era tarde. O portão foi fechado e eu fiquei de fora. Não podia voltar pra casa pois o material escolar estava na sala, bati no portão, gritei mas foi em vão. Ninguém me ouvia.

Sem outra alternativa, sentei no meio fio defronte a escola. E verdade seja dita, aquele sorvete era horrível, gelado queimava como fogo, meus dentes doíam e não havia ninguém com quem compartilhar a minha dor. E por questão de orgulho tinha que chupar aquele horror. E tinha que achar delicioso. Nesse momento as lágrimas desceram do meu rosto, mas o pior estava ainda por acontecer e nem podia sonhar com isso.

Quando a aula terminou e os colegas começaram a sair entrei sorrateiramente na sala para pegar o material. Aparentemente ninguém havia notado a minha ausência. Rapidamente reuni as coisas, coloquei dentro da minha pasta e sai sem chamar a atenção. Meu coração batia descompassado com a aventura, o volume excessivo no meu bolso ainda incomodava. Como fazer para esconder esse dinheiro? Era um dinheiro secreto que meu irmão me dera para garantir a minha integridade. Dava até pra comprar a passagem de volta pra Bahia caso não desse certo morar com a minha nova família, e era nisso que pensava quando cheguei em casa.

Quando abri a porta da casa e entrei, logo percebi algo sério havia acontecido, ou estava por acontecer. Minha tia me olhava com severidade e uma raiva incontida estava visível em seu semblante. Minha mãe estava logo atrás e seu olhar indagador me deixou confuso.

- O que fazia na rua até essa hora? Perguntou minha tia com o dedo em riste apontado para mim.

- Estava na escola; respondi assustado.

- Mentira, estava na rua, matando aula. E onde arranjou dinheiro para o sorvete que estava chupando? Eu sei de tudo, eu vi. Você roubou o dinheiro de algum lugar, ou foi sua mãe que te deu (escondido de nós)?

Era isso. Minha mãe estava sendo acusada de desviar o escasso dinheiro da família para me favorecer, e eu de matar aula para desfrutar desse privilégio.