A Maria dos Remédios

A Maria dos Remédios era uma moça trigueira. Não vendia unguentos mas, por onde passava, distribuía sorrisos. O ar simpático, o corpo equilibrado e o seu rosto alegre deixavam a rapaziada a seguir-lhe a passada e bastantes olhares das pretensas concorrentes, invejosos e venenosos recaíam, sobre si.

Embora não fosse santa, jamais se lhe vira moiro atracado, e apesar de adulta recente, ainda se mantinha donzela, sem que disso ninguém o suspeitasse.

A muito custo, não por falta de vontade ou inteligência, lá tinha conseguido concluir o secundário, mas a necessidade de uns braços a contribuir para o equilíbrio do rendimento familiar, forçaram-na a dar uma ajuda na miserável mercearia dos pais, na pequena vilória, da qual, nem sequer meia dúzia de vezes, havia saído.

Filha mais nova de um casal a entrar paulatina e doentiamente na velhice e que sempre tivera vistas curtas, os seus outros dois irmãos, cedo se muniram de armas e bagagens, em busca de melhor sorte noutras paragens. Nos primeiros anos ainda apareciam lá pela terra, cada qual a ostentar de ano para ano os progressos feitos nas suas economias e os êxitos, mais consentidos do que conquistados, na irrelevante estabilidade das suas carreiras profissionais. Depois, casados e com filhos, espaçadamente iam dando notícias e por fim, nem mesmo nas datas mais festivas apareciam.

Os velhotes seguraram a única filha a curta rédea tanto quanto puderam e ela, mais por pena e compaixão do que por obediência, foi-se deixando ficar e aparentemente domar, mantendo contudo no íntimo a sua personalidade e a sua privacidade. Os sonhos, esses, guardava-os para si e os poucos segredos que tinha nem sequer poderiam ser considerados pecados venais.

E se sonhava!... Com príncipes fascinantes, não por montarem cavalos brancos e trajarem ricamente. Os seus eram príncipes simples, com sentimentos e princípios bondosos. Sonhadores, tal como ela, no amanho dos dias. Agradecendo a dádiva do sol e a queda das chuvas, quando era a água que faltava. Príncipes nobres, por serem humanos e testemunharem as úlceras abertas pelas dificuldades, pares no trabalho, em vez de figuras decorativas das notícias mediáticas ou das capas de revista nos escaparates das papelarias.

De tanto sonhar, a realidade forjou-lhe um idílio: um peralta vindo da cidade, de boas falas e modos comedidos, montado num alazão de cento e tal cavalos, a voar nas asas do desenvolvimento que se apregoava na vila e era esperado para toda a região.

Engenheiro agrónomo de profissão, acabado de ingressar na função pública, viera destacado para integrar os quadros do instituto de coordenação agrícola local. Ligado à terra por frágeis laços genealógicos; os seus antepassados, aquando da segunda invasão francesa, comandada por Soult, no início do século dezanove, aterrorizados com as narrações dos saques e dos boatos de barbarismo, que os invasores iam praticando ao avançarem sem eficaz resistência País adentro, juntaram os pertences mais valiosos que puderam, desceram o rio Douro, e sem se saber bem de que porto, embarcaram para o Brasil, terra de acolhimento, onde se estabeleceram e granjearam fortuna. Implantada a República, um dos Oliveiras, o seu avô, de nome José, regressou a Portugal, fixando residência em Lisboa e aí desenvolveu uma actividade industrial, que viria a dar frutos graúdos e fartos. Casou com uma republicana da classe média lisboeta que lhe deu dois filhos varões. Um deles, o seu tio Luís, seguiu as passadas do pai nas actividades industriais, o outro, Carlos Macedo de Oliveira, Melo por parte do casamento, cursou direito em Coimbra e era o seu pai.

A infância e a vida não lhe foram difíceis. O curso, regressados à capital, concluíra-o sem grandes rasgos de conhecimento, mas ao mesmo tempo sem entraves. Os caprichos, que acabavam invariavelmente por lhe serem satisfeitos, deram-lhe um à vontade despreocupado e mimado sobre a vida. De figura atraente, metódico e interesseiro, guardava para si a oportunidade de se ressarcir duma qualquer contrariedade que ele considerasse insultuosa; Alberto Melo de Oliveira fora sempre, enquanto miúdo, calculista e nunca perdera o jeito de jogar com artimanhas em prol da satisfação das suas pretensões. Não se podia afirmar que tivesse má índole, isso não, mas os seus predicados deixavam um tanto a desejar.

Instalado e ambientado nas rotinas dos novos afazeres e da nova morada, Alberto deitou a vista ao seu redor e a Maria dos Remédios não lhe passou despercebida e caíra-lhe no goto.

Homem feito, tornara-se numa daquelas figuras tipo, capazes de conjugar o bom-gosto requintado com o culto pessoal. Possuidor de um léxico abundante, utilizava-o consoante as situações, de forma a desdobrar-se num outro personagem, quando as ocasiões ou as necessidades a isso o aconselhavam.

Alugou um piso térreo numa casa rústica perto do centro da vila. A construção, um antigo solar pequeno-burguês, fora construído em pedra granítica e os seus naturais proprietários, emigrantes na Austrália, perdidas as intenções de regressar definitivamente à terra de nascimento, embora ao mesmo tempo, aborrecidos pela eventualidade de as paredes poderem cair em ruínas, caso não interviessem, recuperaram-no na expectativa de o vender com mais-valias. Depressa se desiludiram quanto a esse retorno rápido do capital investido. Persistentes, mobilaram superficialmente os dois andares do edifício, agora independentes; a sala e um dos quartos, em cada qual e rechearam e equiparam as cozinhas e as casas de banho. As traseiras do piso térreo que Alberto alugou, dispunha ainda de um pequeno quintal que só tinha a contornar os muros de pedra umas quantas espaçadas videiras velhas, um pessegueiro ao centro, resistente até aí como a casa, ao abandono. O resto do quintal encontrava-se coberto de ervas secas e terra dura.

A ideia dos Barroso, ao juntarem os tarecos, levando nos braços os dois filhos menores e ao rumarem, com os fumos do vapor a cruzar os oceanos até à ilha continente, era a do regresso futuro. Ao princípio a vida não lhes foi fácil, como quase sempre acontece aos emigrantes. Mas, com os ponteiros do tempo a delinearem o carvão das rugas, os investimentos assentaram e os negócios acabaram por prosperar. Os filhos, entusiasmados por outras motivações, cresceram, retardando-lhes o regresso. Três décadas passadas, a vinda foi para matar saudades e enterrar as recordações da infância. A recuperação da casa, que obstinadamente fizeram questão de acompanhar, era a expiação do seu abandono e o cordão umbilical que os ligaria eufemisticamente e para sempre ao berço natal. Com as obras terminadas e sem comprador à vista aceitaram de bom grado a sugestão da imobiliária quanto ao seu aluguer.

Arrepiado com a pacatez da vila, Alberto, habituado ao rebuliço diário e à agitação nocturna da cidade, exorcizava a sensação de ter sido desterrado para o mais inóspito dos lugares. Saboreou, desconfiado, a rotina da terra e, aos poucos, aprendeu a apreciá-la. A qualidade de vida e a serenidade dos dias, sem bruscos sobressaltos, acabaram por lhe agradar. Pensando bem, concluiu com os seus íntimos botões, a sua posição permitia-lhe levar uma vida pacata e sempre que quisesse poderia dar um salto ao outro lado da fronteira ou mesmo, para se extrovertir, até à cidade.

Maria dos Remédios acompanhara com curioso interesse a chegada do forasteiro. O charme do rapaz atraía-a e ao se cruzarem os olhares, na rotina da continuidade, apercebeu-se de que ele também a observava. As idas à mercearia, a pretexto de qualquer fútil necessidade, multiplicaram-se em ondas de sintonizada frequência, essencialmente quando o movimento da clientela era diminuto e a duração das estadas alongava-se em conversas prolongadas, mormente circunstanciais. Um dia o inevitável aconteceu:

— Aceita jantar comigo no sábado?

Sem se dar conta, um — sim — sem receios, escapou-se dos seus lábios.

Atraída pela figura de Alberto; alto, musculado sem exagero, pele clara, rosto fresco, de olhos grandes, com pupilas igualmente enormes, castanho-carregado, onde bailava uma impertinência contida, sobrancelhas e pestanas negras, tal como o cabelo, bem cuidado, nariz conforme com a face ligeiramente ovalada e o queixo redondo. Nos lábios, um sorriso atrevido, obstava às renitências e o convite era o corolário das suas vontades mútuas.

Ela, sabia-o bem, não era de desprezar. Sempre alegre, bem-disposta, mesmo quando as agruras lhe eram mais pesadas, juntava ao seu bom-feitio um equilíbrio físico que a tornava atraente e desejada pela sua indesmentível sensualidade. Maria dos Remédios conhecia o fascínio que fazia recair sobre si os olhares masculinos. Agradava-lhe esse seu atributo e servia-se dele, mais por brincadeira do que por vaidade. Em boa verdade, até então, nenhum mancebo das cercanias lhe despertara particular interesse. Com o janota da cidade os seus sentimentos evoluíram. Ao vê-lo pela primeira vez, logo no dia em que provisoriamente se instalou na Residencial Central, sorveu o perfume daquele corpo masculino onde se adivinhava a determinação. Enfeitiçada, o “sim” da aproximação, esperava a sua oportunidade e quando esse instante surgiu, era desde há muito desejado.

Jantaram fora da vila no dia combinado. Alberto era paciente e arguto conhecedor da personalidade humana. Não quis afoitar-se para além do que a moça ansiava e com esse comedimento ganhou-lhe a confiança. Maria dos Remédios julgara-o objectivo e ousado. Sonhadora, teria aceitado de bom grado um avanço ponderadamente intimista e na falta desse atrevimento, acabara por ficar ansiosa e confusa. Agora era ela quem esperava a sua vinda, à porta da mercearia, após o final do trabalho, quando as tardes se esmoreciam na penumbra, e sempre que Alberto se atrasava, ou não aparecia mesmo, a melancolia da ausência apertava-lhe o peito e enssombrava-lhe o coração.

Alberto, por seu lado, evitava comprometer-se e era-lhe nisso claro. Não por que não gostasse ou não simpatizasse com Maria dos Remédios, antes sim, por filosofia pessoal. Apercebeu-se de que ela estava embeiçada por ele e esse facto assustava-o. Compreendeu que ela, ingénua e inexperiente, via nele o seu predestinado. Ele, pelo contrário, teria preferido que Maria dos Remédios fosse mais cabeça tonta e leviana. Foi-a prevenindo, com explicações simbólicas e evocativas, da sua pouca vontade em assumir compromissos. Por vezes evitava-a, ficando até mais tarde no serviço, mas os vinte anos da rapariga, o seu viço e a sua contagiante alegria, persistiam em lhe atormentar o entusiasmo.

Em contrapartida, ela via nele um homem feito, culto e amável, não totalmente inexperiente, certamente vivido, isso sem dúvida, mas, com os seus quase vinte e nove anos, ainda insuficientemente amadurecido. Sonhava poder conquistá-lo, como poderia fazer com a maioria dos seus admiradores, se assim o entendesse. As reservas dele confundiam-na; ela que jamais se oferecera a alguém, era polidamente repelida, por e a quem, gostaria de se entregar sem rodeios.

Alberto nunca tivera a ousadia de a convidar para sua casa, temendo o que pudesse acontecer com a presença dela, os dois a sós, no seu espaço reservado. E se a relação deles perdurava há meses e aos poucos se solidificava, essa convivência, em que se permitiam um ou outro velado impulso mais íntimo, afastados dos olhares alheios, foram sempre em locais públicos e da parte de Alberto merecedores de retraída espontaneidade e de pronto refreados. Conversavam horas a fio, diálogos longos, ele bom orador, culto, retórico. Ela, mais simples, possuía o dom do discurso corrido, alegre, mas limitado. No entanto, tal não os impedia de trocarem impressões profundas e complexas e na companhia dele, Maria dos Remédios, enriquecia-se intelectual e culturalmente. Mas no ar, pendente, pairava constante a relutância de Alberto em mergulhar desarmado em assuntos que o comprometessem ou que pudessem ser interpretados como a aceitação assumida de uma relação com meta à vista.

Numa tarde de sábado, ao aproximar do crepúsculo, sabendo que Alberto estaria em casa, Maria dos Remédios, em toilette cuidada, discretamente perfumada e maquilhada, bateu-lhe à porta transportando na mão um saco de lona azul-marinho. À abertura da porta, sorrindo, exclamou:

— Como sabia estar em casa trago víveres para jantar aqui consigo.

Atarantado e perplexo com a visita, após a surpresa inicial, convidou-a a entrar.

— Eu faço o jantar — disse decidida, já no interior da casa.

Pasmado, Alberto não sabia nem o que dizer nem o que fazer. Quando a luz lhe regressou ao raciocínio, pegou no saco que Remédios ainda segurava na mão e apontou-lhe a porta da cozinha. Pousou o saco no balcão corrido e ajudou-a a desenvencilhar-se do tailleur, uma peça ligeira, de tom bordeaux e de meia estação: Maio estava prestes a despedir-se e os eflúvios da Primavera escorriam mornos dos rebentos das árvores, ruborizando os bagos pendentes e maduros, na folhagem verde-forte das cerejeiras.

“É o tempo em que o amor se torna mais intenso, fluindo imprevisível no soluçar triunfante da prodigiosa mãe-natureza. Flora e fauna irmanadas num amém de flores de laranjeira como corolário da vida. Tempo de sensações vivas, de dias longos, prenhes de odores doces, de noites tépidas e de amanheceres amenos”. Alberto enleava-se nestes devaneios enquanto colocava o casaco da visita, dobrado, sobre o espaldar de um dos cadeirões da sala. Quando se virou, viu o sorriso alegre e os olhares ternos que, serena, Maria dos Remédios lhe lançava.

— Não se deveria ter preocupado em vir carregada — disse ele.

— Quis fazer-lhe uma surpresa — retorquiu ela e acrescentou — Eu faço o jantar, você encarrega-se de por a mesa —.

Estavam ambos de pé, Alberto aproximou-se, pegou-lhe na mão fina e deu-lhe um beijo na face maquilhada. Maria dos Remédios estremeceu.

Guiou-a pela mão até à cozinha, familiarizou-a com os armários, os seus conteúdos e deu-lhe umas breves instruções quanto ao funcionamento dos equipamentos. Tinha tudo arrumado e limpo. Remédios notara o mesmo na sala comum. Ficou um tanto surpresa, conhecedora do seu celibato, sabia que ele não tinha contrato com ninguém para lhe cuidar da casa.

Ajudou-a nos preparos iniciais da refeição. Enquanto cozinhavam iam conversando e se acaso riam de uma brincadeira ou aproximação mais precipitada, ruborizavam, tanto um como o outro, mas sentiam-se alegres por partilharem aqueles agradáveis momentos.

Alberto foi pôr a mesa. Esmerou-se na escolha da toalha, dobrou os guardanapos de linho formando figuras a enfeitar os copos de cristal, utilizou o serviço de porcelana que tinha e escolheu talheres nobres. Um centro harmonioso e dois castiçais, completavam a intimidade festiva da mesa de jantar.

O requinte discreto fazia jus ao bom-gosto intrínseco de Alberto. Sentaram-se à mesa como se o tempo não passasse. Remédios, compensava com encanto, a sua condição modesta. Boa cozinheira, soubera decorar a travessa e os olhos saboreavam também, não só a comida, como a aura que os envolvia a ambos. A música de fundo, um nadinha perceptível, pairava na sala, embalando-os em nuvens de tons rosa sensualmente perfumadas, ao ponto de o próprio Colin, da Espuma dos Dias, corar de inveja ao observá-los da estante onde desconsolado repousava.

Magnetizados, davam-se as mãos pousadas sobre a mesa. Terminado o repasto, continuavam retidos nas cadeiras, saboreando um bem-estar que não queriam espantar. Maria dos Remédios aproximou o seu rosto do dele e o beijo surgiu natural, trémulo e húmido, nos lábios de ambos.

Sentaram-se no sofá. Ela deitou-se, apoiando as costas nas pernas dele e a cabeça no braço que se lhe estendera. Tagarelaram embevecidos, trocando confidências e apesar de Alberto lhe reafirmar a sua renitência em se comprometer, nem ela nem ele, abdicavam de se acarinhar.

A noite ia longa. No céu as estrelas tremeluziam num fantástico bailado acompanhadas pelo prateado luar celestial. Maria dos Remédios ciciou-lhe ao ouvido pedindo-lhe que a levasse para o quarto. Alberto assentiu, fascinado por aquele corpo quente e doce, na plena frescura da juventude, estar anichado nos seus braços.

Estendidos no leito ainda composto, entregaram-se ao namoro, enquanto as roupas se iam soltando peça a peça. Ardiam em febres procurando acalmias no contacto das suas peles. Longínquo, numa quase indistinta voz suplicante, Alberto escutou o sussurro de Maria:

— Vem de mansinho porque é a minha primeira vez — …

Ele estagnou. Apartou-se do corpo dela. Confuso, quase assustado, disse com os lábios trementes:

— Eu não quero essa responsabilidade —.

Ela colou-lhe um dedo nos lábios. Olhou-o com ternura, beijou-lhe o peito e fixando-o olhos nos olhos exclamou:

— Sou eu que te quero a ti. Não te exijo nada, Alberto. Abraça-me querido —. E num gemido doloroso de felicidade, na noite do Maio, Maria dos Remédios, disse adeus à virgindade.

Dois meses passados, Alberto Melo, entrou de férias e foi a Lisboa. Aceite o pedido de transferência, nunca mais retornou à vila, a qual, jamais iria esquecer.

Moisés Salgado