Duras lembranças

, e então lembrei de quando meu avô me falou: “Filho, o mundo somos nós que o fazemos”.

Passados muitos anos, ainda lembro daquela frase enigmática para uma criança de 5 anos; mas assim era o meu avô: enigmático, misterioso... assim como o universo. E passei a tentar descobrir o significado daquela frase; aquela frase que me seguiria por todos os meus minutos, horas e dias. Ela me acompanhou do meu primeiro dia de aula no Jardim de Infância até meus últimos dias na Faculdade. Nessa segunda fase da vida, esteve comigo como algo que deveria ser seguido, ou feito; quase uma filosofia de vida. Mas, no fundo de minha consciência, eu sabia que não seria nada fácil.

Pedrinho e eu costumávamos brincar todas as tardes no cume de uma bela colina que dava para a maravilhosa vista do rio que cortava a fazenda na qual morávamos. Era um rio estreito, mas belo, com suas águas límpidas que descia sinuosamente, se movimentando feito uma cobra gigante, contornando pedras e pequenos morros até cair em um descampado, depois pegava uma linha reta e, após uma enorme curva, sumia por detrás de um matagal. Os seus últimos movimentos no final do dia eram belos, coloridos pelos raios do sol, e formavam um arco-íris em plena terra. Dizíamos que o mundo acabava ali, pois dali pra frente já não víamos mais nada, e, na imaginação de duas crianças de 5 e de 7 anos, o mundo não poderia ser tão grande. Portanto, quando eu lembrava da frase de meu avô, — “o mundo somos nós que o fazemos” — eu imaginava que depois do arco-íris que encerrava o nosso rio, não havia mais mundo, ele acabava ali, em um buraco fundo e escuro, como a minha noção de mundo. E se alguém o construísse a partir daquele lugar, ele poderia crescer mais. Pois até ali ele existia porque meu avô o havia construído, com o suor de seu esforço e do esforço de muitos peões que trabalhavam na fazenda.

Ali vivi os melhores dias de minha infância entre galinhas, vacas, cavalos e mais uma variedade enorme de bichos que minha avó criava. A casa-grande tinha um quintal que se estendia por uns cem metros, aproximadamente, e cheio de animais. Os passarinhos vinham comer em nossa janela alguns pedaços de cuscuz e restos de comida que colocávamos para eles. Dormir e acordar com a sinfonia de milhares de pássaros era maravilhoso. Ao abrir a janela, os raios de sol vinham aquecer o velho casarão alegre e cheio de vida. E víamos, ainda que distante, a serra verde e imponente onde meu avô afirmava ter vários tipos de animais.

Anos depois meu avô morreu. E aquela fazenda alegre e bonita morreu com ele. Morreu para mim e para Pedrinho também. O nosso pequeno e divertido mundo cresceu; tomou outras dimensões. Foram instalados postes de energia elétrica; muitas máquinas gigantes chegaram e estenderam o mundo para além do nosso pequeno arco-íris. Meu pai, dias depois, teve de vender a fazenda. Disse ele que não tinha mais graça viver ali depois da morte de meu avô. Certamente ofereceram a ele uma boa quantia em dinheiro para que ele a vendesse, pois, logo depois, fomos morar em um belo casarão na cidade. Construíram uma fábrica onde terminava — para mim e Pedrinho — o nosso pequeno mundo. Nosso cume verde, onde brincávamos nos fins de tarde, fora destruído e aplainado por tratores e recobertos com asfaltos pretos e de cheiro enjoento, que me embrulhava o estômago. O canto dos pássaros fora substituído por buzinas de caminhões e por barulhos de motores; o cheiro do verde fora trocados pelo odor de óleo e fumaça, que escurecia o céu azul de nosso pequeno, mas maravilhoso mundo.

Eu também mudei, de menino fiz-me homem e, ao longo dessa mudança, venho sofrendo as diversas modificações a que estamos sujeitos em um mundo moderno, competitivo, capitalista. Pedrinho também mudou. Na verdade, sumiu. O rio, nosso companheiro de infância, já não mais existe nele peixes ou qualquer tipo de vida saudável; suas águas agora negras, servem como escoamento de esgoto e outros lixos tóxicos.

... uma triste sensação de infelicidade me invadiu o peito, e a frase de meu avô “Filho, o mundo somos nós que o fazemos” nunca havia causado tanto efeito.

João Félix
Enviado por João Félix em 30/05/2007
Reeditado em 30/01/2008
Código do texto: T507287