Enquanto há vida...

O relógio da sala bateu às doze horas, àquela hora ao repasto na mesa composta por toda a família, Mário não conseguia esquecer os dias que se passaram. Seu corpo ainda sentia os resquícios do AVC, que quase lhe tirara a vida. Olhou ao seu redor com carinho, a presteza da mulher, a algazarra dos filhos, Márcia, aquela que há anos lhes servia e que já havia se tornado da família e mais uma vez se lembrou das dores que sentiu e daquela horrível opressão na cabeça, seguido a outros tantos sintomas culminando com o AVC, felizmente de menor intensidade. Lembrava-se dos pensamentos fugidios, das lembranças e preocupações e dos sentimentos que se seguiram àquele momento. O medo era o sentimento do qual ele mais se lembrava, lembrava também daquela forte sensação de impotência, era médico e não podia socorrer a si mesmo, mas o que mais o assustava era a possibilidade de faltar à sua família, a mulher carinhosa, os filhos em tenra idade, a carreira, os planos... Num átimo de segundo toda a sua vida havia se descortinado à sua frente, momentos felizes, dificuldades, a profissão que ele havia escolhido, as necessidades prementes de jovem pobre, seus pais e o sacrifício para que ele se formasse. E, agora ele estava ali... O toque do relógio, o barulho das crianças lhe trazia à vida e lhe diziam que todo aquele sofrimento já havia passado. Admirou a sua esposa, jovem e altiva e um pensamento de gratidão invadiu a sua alma. Não importava para ele o amanhã, não mais sabia se ele viria, compreendia agora a efemeridade da vida. Cerrou os olhos por alguns instantes, para eternizar em seu coração aquele breve momento. Decidiu que iria para a praia no próximo final de semana, diminuiria os seus plantões, afinal, de que serviria dinheiro, fama, poder, se lhe faltasse a vida? Sim, a vida agora era o que mais lhe importava. Valorizava agora as horas, minutos, segundos, a família, o seu bem precioso, e a medicina. O juramento, ele havia esquecido... Fazia planos, retomaria os sonhos de jovem, quando acreditava que, com a medicina, poderia minimizar o sofrimento das pessoas, havia esquecido... A vida lhe chamara de volta, pensava, e o seu coração de novo se encheu de um forte sentimento de gratidão. A alegria infantil era uma música aos seus ouvidos, com um sorriso fitou a mulher e os filhos. Sim, fora trazido de volta para a vida, para a vida que agora lhe sorria.

Ana Campos
Enviado por Ana Campos em 31/12/2014
Reeditado em 12/09/2021
Código do texto: T5086137
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