Espiral

Entre as piadinhas e as críticas amargas lá estava eu. E quanto mais o meu piercing de orelha brilhava, mais eu era tido como um extraterrestre no meio de uma festa de família. Eu, a ovelha negra, o estranho no ninho, o “maldito” fruto. Durante aquela reunião familiar, eu me mantive calado. Entretanto, algumas palavras, mesmo sussurradas, entristeciam o meu coração. Minha alma sentia a pior das solidões, mesmo estando cercado de pessoas, mas aquelas pessoas, as quais eu deveria amar e por quem eu deveria ser amado viviam em seus próprios mundos. Viviam pela aparência e tinham horror ao que se poderia considerar diferente. Nem minha criatividade, nem meu bom gosto, nem meu caráter, nem minha inteligência… Absolutamente nada era suficiente para eles, que acreditavam que pessoas como eu são egoístas, ridículas e fadadas a tristeza, entre outras coisas. E ali, diante de todos, logo após a ceia de natal, meu primo Amadeu se manifestou. Disse que tinha algo importante para contar. Sobrancelhas se levantaram, olhares de malícia e crueldade também, enquanto os mais diversos pensamentos se passavam naquelas mentes fechadas. Não era possível saber o que esperavam ouvir, mas, conhecendo-os bem como eu os conhecia, sabia que a revelação iria chocá-los, até porque Amadeu já me havia dito de que se tratava. Então, sem mais delongas, o meu primo contou que iria se separar. Aquilo foi como uma segunda bomba dentro daquele tradicional clã. A primeira foi quando me despiram naquela mesma sala, espalhando de forma cruel as minhas intimidades. Àquela altura do campeonato, eu só observava as reações dos mais conservadores. Tia Judith, mãe de Amadeu, chorava por saber que seu filho não poderia mais lhe dar a vida luxuosa que tinha, já que boa parte do dinheiro que ele ganhava vinha da esposa. Minha mãe, vítima da labirinte, olhava para mim, como se soubesse que eu sabia. Talvez eu transparecesse aquilo, ainda que me esforçasse para evitá-lo. Depois disso, todos resolveram ir embora. E mais uma vez minha mãe me criticou, ao saber que eu estava ciente daquela situação e não lhes contei. Eu pedi desculpas, mas aleguei que nada tínhamos a ver com a vida do primo Amadeu. Ela, por sua vez, esbravejava aos quarto ventos os maiores impropérios sobre a minha vida íntima e, ainda que aquilo me machucasse, a minha atitude foi simplesmente ignorar as ofensas e sair do quarto. Eu desci as escadas caracóis com certo peso no coração. Sentia um misto de mágoa e carência. E quando cheguei no meio da escada, percebi que mamãe vinha atrás de mim. Antes que eu pudesse alertá-la sobre seu estado, ela, que já estava tonta, caiu da escada. Em uma fração de segundos, o filme de sua vida lhe passou diante dos olhos, mas, graças a Deus, antes que ele pudesse ser concluído, eu a segurei e ela caiu por cima de mim ao atingirmos o chão. Eu, pro incrível que pareça, tive apenas escoriações, mas estava preocupado com o estado dela, já inconsciente. Então, chamei a ambulância e, no hospital, ao recuperar a consciência, seu semblante era assustado, mas seus olhos me agradeciam por tê-la salvo. Sobre a minha vida, depois daquele dia, nunca mais ouvi coisa alguma sair daquela boca. As antigas críticas deram lugar aos conselhos e eu pude finalmente abraçar uma amiga; sem rótulos pra mim, sem rótulos pra ela.

Tom Cafeh
Enviado por Tom Cafeh em 20/01/2015
Reeditado em 27/01/2015
Código do texto: T5108626
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