Este texto é dedicado a todas as mulheres que por muito tempo sofrem em silêncio, por vezes quase toda a vida, até ganharem coragem e denunciarem a situação opressiva em que vivem.



 
A MULHER QUE APENAS QUERIA SER AMADA
 
 
Amélia fora educada pela mãe de forma sempre austera e rigorosa. Incutira-lhe preceitos religiosos, sem margem para contestação. Fora educada num colégio de freiras, cujas sucessivas mensalidades a mãe conseguiu pagar à custa de imensos sacrifícios e após dois anos de pequenos "ganchos", ocupações sem futuro, a mãe providenciou que conseguisse um trabalho minimamente decente, com salário aceitável. Entretanto foi conhecendo melhor Amâncio, seu vizinho de sempre, que via na missa, aos domingos. Ele acabou por lhe pedir solenemente namoro. À mãe agradavam os seus modos sempre amáveis. De vez em quando, em tardes de namoro sempre vigiado, trazia à mãe um pacote de pastelinhos de amêndoa e para a namorada um belo arranjo de flores.
Num belo dia de Junho acabaram por casar, com a bênção da mãe. Arranjaram uma casinha um pouco distante de onde sempre haviam morado, modesta mas sempre asseada e graciosa, fruto do labor de Amélia.
Os primeiros tempos foram de felicidade e as gentilezas de Amâncio eram uma continuidade do namoro. Amélia sentia-se feliz.
Depois vieram os filhos, um, dois, ambos rapazes. Entretanto Amâncio teve o infortúnio de cair no desemprego e começou a beber. E a embebedar-se fortemente. Para ter dinheiro que chegasse, Amélia arranjou um segundo emprego, fazia umas horas de limpeza num banco. Amâncio, ébrio quando ela chegava a casa, culpava-a de tudo, pelo seu desemprego e por ter ficado com o corpo disforme após ter os filhos e assim perder os atrativos. Amélia suportou tudo, ainda gostava dele, adorava os filhos e queria sobretudo manter as aparências, mostrar uma existência feliz. Durante algum tempo conseguiu mas a mãe percebeu e questionou-a. E em vez de a apoiar recomendou-lhe obediência pois era tradição respeitar os maridos e manter o casamento, custasse o que custasse. Esse era o verdadeiro preceito da família cristã - a mulher deveria amar e servir o homem.
No dia em que Amâncio lhe deu uma grande tareia, fugiu para casa de vizinhos mas teve pudor em se queixar às autoridades, pensou na vergonha que seria, toda a gente a comentaria, andaria nas bocas do mundo. E foi aguentando. Esporadicamente, o marido batia-lhe ou então insultava-a até se cansar e adormecer com uma garrafa na mão, tornando a vida conjugal um inferno.
Entretanto, para ajudar nas despesas, Amâncio convidou o irmão mais novo, Cristiano, doente dos pulmões, a morar lá em casa. Gostava dele, apenas lhe criticava o gosto pela escrita, "poesias" dizia ele, sempre com aquele ar apático e sonhador.
A princípio, Amélia ficou desagradada com a ideia, sempre era um estranho em casa, mas acabou por concordar pois o dinheiro que ganhava raramente chegava até ao final do mês.
Quando ela o conheceu, só o vira uma vez, no casamento, agradaram-lhe os seus modos delicados e também aquelas grandes olheiras, uma estranha passividade. Ele passava longos períodos à janela, olhando o exterior, pensando sabe-se lá o quê.
Tinha publicado dois livros com algum sucesso e o produto das vendas mal lhe dava rendimento para sobreviver.
Amélia começou a ganhar mais afinidade com ele e olhava-o com atenção quando Cristiano falava, o seu discurso era inflamado pelos versos que declamava com paixão. Então ela olhava-o atentamente e essa paixão era contagiante. Começou a devorar os seus escritos, fascinada. Aquele estilo de escrita fazia pulsar o seu coração. Para si o amor sempre tinha sido uma convenção transmitida pela mãe, que por sua vez a tinha recebido dos seus ancestrais. E então começou a sentir-se dependente de Cristiano. Ele era diferente do irmão. O cunhado tratava-a com carinho e doçura, olhava-a com os seus olhos castanhos, tristes e acabava sorrindo para ela.
Aos poucos Amélia sentiu que amava, um sentimento inteiramente novo para ela. Sentia paixão pelo poeta. Esse amor cresceu desmesuradamente e acabou por ter intimidade com ele, não do jeito do marido, de forma mecânica e ritual, mas sim com muita ternura. Ficava nas nuvens quando os seus braços a envolviam.
O enlevo foi durando, entretanto Amâncio ficou mais calmo e recuperou o emprego.
Infelizmente, uma das crises da doença de Cristiano acabou por o internar no hospital e os problemas respiratórios agravados roubaram-lhe a vida.
Amélia sofreu imenso com essa perda, deixou de comer, só a mãe lhe valeu pois o marido entretanto recomeçou dependente na bebida.
Decorrido algum tempo, Amélia caiu em si, decidiu que não mais seria uma "amélia". Refletiu muito e um dia, quando o marido chegou a casa, habituado a ter tudo pronto, o jornal e os chinelos a jeito e cervejas no frigorífico, achou estranho o silêncio, nem os filhos buliam como habitualmente.  Suspeitou de algo e correu para o quarto. Então viu os cabides vazios da roupa dela, tal como as gavetas. No quarto dos filhos o mesmo, tudo vazio…
Amélia tinha saído de casa e levado as crianças. Então Amâncio deixou-se cair numa cadeira e com um pack de latas de cerveja na mão, bebeu até adormecer...
 

 
Agosto de 2014
 
 
 
 
ARTE: GOOGLE
Ferreira Estêvão
Enviado por Ferreira Estêvão em 11/02/2015
Reeditado em 16/02/2015
Código do texto: T5133800
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