Aplainando arestas...

Sempre foi - e vai ver que ainda é - vontade de papai que aos nossos estudos juntássemos o conhecimento de um ofício, ficando-lhe flagrante a maior serventia dosegundo sobre o primeiro.

Tendo chegado a meio-oficial alfaiate, o trabalho na fábrica de tecidos lhe interrompera a caminhada rumo à maior complexidade dos truques de se cortar e coser uma jaqueta. Ele, nada obstante, se defendia, e nos vestia, com as calças e camisas que cortava e cosia.

E tudo fazia - com a sartorial cumplicidade de mamãe,dona ela, além do lar, de um bando renitente de teares, e da sapiência que lhe garantia o corte centesimal, bem no bojo de seu estojo. E a máquina de costura Singer, de pedal, a reboque dava o toque, afinal.

Primogênito entre os varões, ainda varinhas, e falto da aptidão para as artes e ofícios, coube-me, ainda pre-adolescente, pilotar uma banca de marceneiro. As ferramentas, com as curtas economias e longas esperanças de papai e mamãe, iam sendo adquiridas parceladamente - para o encanto da miúda gente, ainda pouco afeita ao batente.

O torno foi dos primeiros. Comprado na já então decadente venda& do Inácio Campos, era pintado dum esmalte azul escuro e foi fixado no tampo espesso da banqueta. Depois vieram de procedências várias, martelo, alicate, torquês, grosa, esquadro, compasso, a serrinha fina, que permitia serrar em curva madeiras finas, a máquina de furar, manual, a pua, idem, e assim por diante.

A compra da plaina já foi um item mais contencioso: fiquei apaixonado por uma Stanley, de aço, mas acho que com o coração apertado e o bolso mais ainda, papai fixou-se numa de madeira, sem marca, rombudinha e até com uma tendência a dar um tilt nas mãozinhas mais leves.

E foi em caixotes de sabão - de madeira que mal valia uma boa esfrega - que iniciei o aprendizado, literalmente a (li)dar com o pau. A produção, iniciada a todo vapor - eu que me mirava no exemplo do João Duzé Martins, filho de carpinteiro, talentoso que só ele, e que se especializava em produzir carrinhos de madeira - resumiu-se a uma caixinha para guardar dinheiro, que se assemelhava a uma fôrma de rapadura, um escorredor de pratos e um projeto de gaiola.

Cinquenta anos decorridos, a banca e as ferramentas continuam a esperar que eu desabroche minha aptidão. Papai ainda botou lá um esmeril - elétrico. E eu, com estas mãos, pelos caminhos que trilho, só - ainda - dedilho. Será que ainda esmerilho?

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 09/03/2015
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