INÉRCIA

Seus olhos estavam fechados e o vinil rodava na vitrola empoeirada na estante da sala. Apesar da porta de seu quarto estar fechada, podia ouvir os ruídos da música, ao longe, chegando como um leve assovio em seus ouvidos. Um doce assovio.

Tudo ali tinha um ritmo tranquilo: os móveis se encontravam no lugar; sua cama – sobre a qual estava deitada – tinha os lençóis azuis devidamente esticados; os ponteiros do relógio giravam devagar, sem pressa; o ar que vinha da fresta da janela entrava macio, arrepiando seu corpo. Suspirou, deitando o livro ainda aberto sobre o peito e tirando os óculos de leitura. Todas as coisas do mundo pareciam se encontrar no lugar onde deveriam estar, perfeitamente postas e arrumadas.

Não ousaria se mexer e arruinar com tamanha perfeição – quase cósmica, talvez. Ora, a inércia lhe custava tão pouco e era tão grata, tão confortável. Doce inércia! Quão cômodo não era permanecer naquele estado contemplativo, deixando que as coisas acontecessem sozinhas se tivessem de acontecer... Afinal, se nada se faz, nada acontece. E era tolerável que fosse assim quando o não-acontecer-nada implicava apenas em que as coisas continuassem como estavam: imóveis e cômodas.

Amanhã colocaria os pés para fora do quarto. Amanhã ligaria a tevê para assistir o noticiário. Amanhã tentaria fazer a receita que ensaiava há meses. Amanhã visitaria a amiga doente. Amanhã telefonaria para seus pais para dizer-lhes que tomaria o avião no próximo mês para visita-los – e diria que os amava. Amanhã passearia de bicicleta pelo parque municipal – passeio este que planejava fazer há muito tempo. Amanhã mandaria uma mensagem para ele dizendo que ela, talvez, estivesse mesmo errada, e lhe pediria desculpas. Mas amanhã, hoje não. E se não fosse amanhã, por que não no dia seguinte? Agora, tudo de que precisava era permanecer em seu casulo.

Mas eis que percebeu, de súbito, o peito apertar e uma sensação vazia lhe tomar os pulmões. Pensou ser o peso do livro, tirando-o de cima de seus seios. O aperto foi se tornando insuportável, e uma dor aguda floresceu debaixo de suas costelas. Ia desfalecendo aos poucos, mal podendo respirar. Curvou-se na cama, de bruços, com as mãos sobre o colo. Uma lágrima surgiu do canto esquerdo do olho e caiu pesada sobre o lençol azul, enquanto as lentes de seus óculos de leitura se estilhaçavam sobre o chão de madeira. A dor era enorme, do tamanho de seu medo. Não podia nem mesmo gritar: a voz não lhe saía. O desespero alastrou-se por sua alma.

Descobriu que o quarto não sentiria mais o toque de seus pés gelados; que a tevê não seria ligada no noticiário; que a receita permaneceria por fazer; que a amiga enferma ficaria sem a visita; que seus pais não ouviriam sua voz, tampouco seu “te amo”; que a bicicleta não passearia no parque; que ele não receberia suas desculpas.

A escuridão tomou seus olhos e, de repente, o amanhã não existiu mais.

O mundo permaneceu inerte.

Dona Iaiá
Enviado por Dona Iaiá em 11/03/2015
Código do texto: T5166200
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.