João, o Pedreiro das Torres

Ao amanhecer, João coloca a água na chaleira e leva ao fogo enquanto prepara o bule para passar o café. A neblina cobre o horizonte numa manhã fria e a grama esbranquiçada recebe os primeiros raios de sol. A segunda- feira anuncia mais um dia de trabalho para João e milhares de trabalhadores da construção civil. Na rádio as notícias da região e do clima ecoam pela casa e na garagem o barulho das ferramentas que João maneja na manutenção de sua “monark barra circular” que tinha escapado a correia na semana passada. Na garrafa térmica azul enche com forte café preto e no pote de plástico um pedaço de rosca de polvilho, outro de pão caseiro misturado no resto de papa-terra frito que sobrou da janta. Sobe na bicicleta e vira a esquina onde encontra um companheiro de longa data e de muitas empreitadas. Entre uma pedalada e outra, conversam sobre a rodada do futebol, as contas para pagar e as pescarias, surgindo nas expressões a confirmação de que “fulano “afofou” no pampo no alto do saltinho...” ou “beltrano que “embarcou” um burriquete no valo da furna...” e a célebre: “ Visse a malha de tainha que “encostou” na praia da cal essa madrugada?” Um bate papo que segue o trajeto até a chegada no prédio que estão trabalhando na zona norte da cidade e só é interrompido pela sirene que toca às 7 da manhã impondo a rotina de trabalho aos operários.

João aprendeu a ser pedreiro na sua infância sendo “oreia seca” (ajudante, servente) com seu pai. Semianalfabeto não teve muitas oportunidades de emprego em sua vida, estudando até a 2ª série e depois abandonando a escola para trabalhar. Como se não houvesse opção, fica admirado com sua carreira que iniciou como “arigó” e lhe rendeu valiosos ensinamentos que o formaram num habilidoso “mestre de obras”. Escuta o jovem engenheiro com paciência, pensando em seu íntimo como um rapaz que nunca virou “massa” ou “assentou um tijolo” queria ensinar alguma coisa a ele que completava trinta e dois anos de profissão e uma coleção de lesões na coluna e nos joelhos. Interpretava uma planta baixa melhor que os engenheiros e arquitetos e orientava como ninguém seus companheiros, dividindo as tarefas, o café e as risadas durante o turno. O cotidiano na construção é de trabalho pesado em meio aos maquinários e materiais, exigindo a fadiga dos trabalhadores a cada dia. Por outro lado, a construção civil impulsiona a economia e garante o “ganha- pão” de muitas famílias com muito suor, e por vezes, com sangue e lágrimas.

Num apartamento de luxo com vistas para a Ilha dos Lobos, João estava dando os retoques e acabamentos para a entrega do imóvel, quando deslumbrado com a paisagem, pensa: “Quantas vidas terei que trabalhar para comprar uma cobertura que vale milhões de reais? Sem meus braços esse apartamento não existiria e a desgraça é que depois de pronto eu não coloco mais meus pés aqui!” Sua família não seria convidada para um jantar à luz de velas com vistas para o mar e provavelmente, só entraria naquele apartamento se fosse contratado para algum serviço de pintura ou de reforma. Quem sabe em sua velhice poderia tornar-se zelador dessa torre de 25 andares? Quanta honra para esse humilde senhor!

Na volta para casa, João pedala devagar cansado da labuta e olha vagarosamente para as edificações do Centro Histórico e surpreende-se com os poucos exemplares que resistem ao tempo. Encosta a bicicleta em um muro e olha fixamente para uma parede de um antigo casario. Leva a mão com carinho à construção com a sensibilidade de um exímio construtor, reconhece nas paredes centenárias de “pedra e cal” uma história que também é sua. Em silêncio, pensa sobre como viviam os pedreiros de um ou dois séculos atrás e quais eram suas técnicas e materiais utilizados para construir moradias e sobrados que duram séculos. Lembra-se das histórias que escutava dos parentes mais velhos sobre os fornos de cal e a olaria da encosta do morro, hoje conhecida como a Praia da Cal. Era tudo muito diferente! As rochas eram extraídas dos morros, o cal era o resultado da torrefação e queima das conchas que se acumulavam na praia ou dos sambaquis, misturando com o barro servia para construir as paredes grossas das casas, igrejas e prédios coloniais. No dilema entre as consequências de sua profissão e as belezas de sua terra natal que se desconfigura a cada novo prédio, sufocando as torres naturais e oprimindo a cidade, lembra com nostalgia de uma infância rodeada pelas dunas, lagoas, matas e rio. Entre suas recordações, estão os banhos na “sanga da água boa”, os passeios de canoa no “Braço Morto” para pescar camarão e os mariscos da pedra que eram retirados no Portão e cozidos na “Furna Seca”.

Nos casarios centenários, João percebe os elementos da natureza no madeiramento, na argamassa de concha e barro, nas telhas e nas rochas que compõe a simplicidade e a exuberância dessas construções. João depende da construção civil para o sustento de sua família, mas gostaria que suas Torres ainda fossem o Morro do Farol, o Morro das Furnas, a Guarita, a Torre Sul e por ventura em um gesto de amor à sua terra, as Pedras Vermelhas e a Itapeva integrariam os mananciais rochosos de suas memórias. Este trabalhador sempre se orgulhou do seu ofício, construindo o “sonho da casa própria” e o “lar doce lar” para muitas famílias que ali escreveram suas histórias de vidas. Chegando em casa, lavando as mãos para o jantar, João, o pedreiro das Torres, abre um sorriso e cria uma rima que gostaria de compartilhar com seus colegas no dia seguinte:

“É uma satisfação construir moradas perto do céu para as pessoas,

Pena que os “espigões” enfeiam a cidade.

Porque será que nossos patrões,

Não resolvem construir em outra parte?”

Publicado no Jornal Litoral Norte RS e Jornal A Folha.

Leonardo Gedeon
Enviado por Leonardo Gedeon em 17/03/2015
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