O Quarteirão

No outono de 1999 houve quatro incidentes num mesmo quarteirão e no mesmo dia, cada qual numa esquina.

Terça-feira, 1° de junho, às 9h44 – Laboratório de Análises Clínicas

Positivo. É um resultado que para certas situações torna-se assustadoramente negativo. Leila morria de medo na escola quando as notas dos exames saíam. Vinham num envelope que ela fazia questão de rasgar até não sobrar mais nada. Caso a nota fosse ruim queimava o boletim. Isso não ocorreu muitas vezes depois que sua mãe descobriu, também se tornou raro o nervosismo com as notas. A escola acabou há tempos, mas a ansiedade e aflição vieram à tona no momento em que Leila abria o envelope cuidadosamente, diferente de como fazia antigamente, olhou o famigerado resultado do teste que pode mudar a vida dela, do namorado e de tudo que lhe cerca.

Parada na esquina da Rua Batalha com a Poder, ficou a olhar insistentemente para o papel que continha o temível resultado. Começara a andar até a faixa de pedestres quando trombou com outra pessoa.

_ Perdão, disse e continuou andando.

_ Onde pensa que vai mocinha?

_ Ah é você.

_ Como assim “você”?

_ Perdão, mas estou confusa, perdida e muito ferrada.

_ Pára com esse “perdão” e me conte o que houve.

_ Você será o primeiro a querer me matar e quem sabe depois se mata também.

_ Diga logo!

_ Positivo!

_ Quê?! Positivo?

_ Sim, positivo.

_ Positivo para quê?

_ Use a imaginação! – disse impaciente.

_ Não pode ser.

_ Pode. É fato.

_ Mas como?

_ Não sei. Já era. Vou dar um fim nisso.

Silêncio. É óbvio que assim como Leila, ele vai concordar com a idéia.

_ Não. Eu quero. Mesmo que não possamos hoje, amanhã poderemos. Batalharemos para nos tornar pai e mãe. – disse Rafael que namora há seis meses.

No mesmo dia, às 13h27 em frente ao Edifício Excelsior

Motivo. Justamente isso que Paulo queria ter. Mas não o tinha ou não lhe deram. Simplesmente demitido numa tarde de outono com um céu entre nuvens. A pergunta que lhe veio foi: e agora? Ele tentou, por mais difícil que seja, procurou se reerguer de um poço chamado: demissão. Atravessou a Rua Superação e seguiu em frente. Dia seguinte, fez seu currículo e o distribuiu pelas agências de emprego. Na primeira semana fez quatro entrevistas, na segunda foram oito, na terceira dezesseis, depois de um mês diminuiu. Decidiu fazer cursos, totalmente diferentes do ramo que trabalhava. Até de padeiro fez. Nada mais coisa nenhuma é igual a desespero. Essa foi a equação que Paulo aprendeu nos seus cursos. Certo dia reencontrou um colega de trabalho que também fora demitido, ele lhe contou que a empresa desviou dinheiro dos empregados. A prefeitura, o governo estadual investigou, só não chegou na esfera federal pois resolveram entrar na linha. Só que Paulo não cogitava voltar caso a empresa o contatasse, preferia algo novo longe da roubalheira. Passaram quatro, sete, nove meses, até que ele conheceu uma mulher que poderia mudar muito o seu destino.

Fim de tarde no Café Paradiso

Desejo. Eles tinham. Poder. Somente com o dinheiro e influência, porém lhes faltavam a propriedade ou capacidade de: multiplicar. Tânia não era estéril, muito menos Carlos, só que não conseguiam realizar o milagre da vida e o objetivo da maioria dos casais. Não eram novos, nem idosos. Visitaram várias clínicas de fertilização e por um capricho do destino as tentativas falharam. Tânia perdeu a paciência.

_ Eu quero um filho, custe o que custar.

_ Vamos pensar num jeito.

_ Qual? Já tentamos tantos.

_ Podemos adotar.

Dia seguinte foram até o orfanato. Lá gostaram de uma criança, mas a mesma já estava destinada para uma família que aparecera horas mais cedo. Tentaram outro orfanato e todas as crianças que gostavam, já possuíam pais que as buscariam depois de acertar a documentação.

_ Não é possível que todas as crianças estejam reservadas.

_ Muito estranho.

_ Que faremos?

_ Vou pensar, deixa comigo e tente esquecer esse assunto.

_ Vou tentar.

_ Conversarei com alguns amigos meus que com certeza darão um jeito nisso.

Apartamento 63 às 21h14

Superação. Palavra que Elisa tentará colocar a frente da letra A do seu dicionário. Sentada na cama, quatro minutos depois que o marido a deixou para se juntar com outra que já o esperava em pé na esquina da Rua Desejo com a Poder.

Recomeçar, reconquistar. Ela teria que fazer tudo isso para não cair em depressão e vegetar pelo resto da vida. Uma mulher de fibra como ela não pode entregar os pontos. Recorreu primeiramente à sua família, mas nada adiantou, estavam bem pior. Depois tentou os amigos, porém não foram muito receptivos. Tudo isso porque durante o casamento Elisa se fechou para o mundo e convivia com os amigos, parentes do marido, e até conversou com a amante sem saber. Agora estava a ver navios.

Procurou empregos e depois de muito tentar conseguiu ser admitida. Batalhou e começou a ter sucesso, o tempo foi passando e ao mesmo tempo recebendo promoção atrás da outra. O lado profissional ia de vento em popa enquanto que o lado sentimental quase rastejava até que Elisa conheceu um homem que poderia lhe devolver a parte que completaria sua vida.

Um ano se passou depois dos quatro incidentes e o presente se apresenta assim.

Quarta-feira, 8h43 - 1ª de junho de 2000 – Laboratório de Análises Clínicas.

Pai, mãe com filha no colo estavam sentados esperando um resultado sair. Ao lado da mãe sentou uma mulher. O pai foi ao banheiro. E a mãe também queria ir, mas com a filha no colo desistiu de ir. A mulher percebeu certa ansiedade em Leila.

_ Muito bonita sua filha.

_ Obrigada.

_ Como ela chama?

_ Aline.

_ Belo nome.

_ Sim, disse Leila já impaciente e aflita. Não queria deixar a filha com uma estranha. Mas não tinha jeito e o marido não voltava.

_ Será que você pode fazer um favor?

_ Sim, claro – disse ela sorridente.

_ Segure minha filha enquanto vou ao banheiro.

_ Claro, dê-me ela aqui – disse segurando a criança.

_ Obrigada.

A mulher levou o bebê e o pai não tinha voltado, pois desmaiou depois de um golpe na cabeça. Quando voltou do banheiro, a mãe procurou por todos os cantos, saiu porta afora e não viu a filha nem a mulher, ninguém que estivesse com seu maior tesouro.

Sala de reunião da Schefer Ltda. 10h05

Vitória. Paulo venceu o desafio e está novamente empregado. Justamente no mesmo prédio onde trabalhou por seis anos. Ele olhava em todos os cantos.Tudo mudado. De lá via a Rua Batalha em pleno movimento.

A antiga empresa falira e a concorrente a comprou e levantou o histórico dos funcionários demitidos, decidiu convidar alguns funcionários para voltar por um salário melhor, é claro.

Depois de alguns meses, Paulo tornou-se gerente do departamento do qual já fez parte, mas mesmo assim ainda não conhecia os sócios da empresa, diziam que havia uma mulher entre eles. Enquanto não trabalhava, saia com sua “amiga”, ou almoçavam juntos, afinal trabalhavam no mesmo prédio.

Certo dia, teve que ir até a sala de um dos sócios, ia falar com o majoritário, mas este não estava, nem os outros dois, só restava a mulher. Bateu na sala e ouviu uma voz permitindo sua entrada, ao entrar deixou a caneta cair e o queixo também.

12h12 – Café Paradiso.

Poder. Graças a ele o casal finalmente conseguiu o maior desejo.

A criança foi entregue nos braços da nova mãe que perguntou.

_ Qual o nome?

_ Aline.

_ Belo nome.

_ Sim.

_ Darei todo meu amor a ela. Será a criança mais feliz do mundo.

O novo pai todo feliz, mas com um segredo bem guardado no bolso, um grande fardo para carregar daqui pra frente. Jamais contará como conseguiu essa criança, sua mulher jamais o perdoaria. Por outro lado sabia que os verdadeiros pais teriam muita dificuldade de criar o bebê e estando nas mãos de um casal mais preparado a menina poderá um futuro melhor. Pelo menos assim pensava.

No mesmo café Paradiso, a algumas mesas dos novos pais...

Superação. Elisa cobrou isso de si mesma um ano atrás e hoje pode dizer de boca cheia. Literalmente cheia da torta deliciosa que comia de sobremesa , bem cara por sinal, mas ela pode pagar. Trabalha numa grande empresa e ainda colabora em uma ONG.

Depois de se distrair, Elisa ficou observando a cena em que uma mãe segurava um bebê no colo ao lado de outras pessoas vestidas rudimentarmente, exceto um homem que parecia ser o pai. Olhou aquilo de forma desconfiada e foi embora em seguida rumo a casa em que funciona a ONG.

Certo dia, em seu escritório, Elisa recebe em sua sala um dos gerentes da empresa. Ao abrir a porta, ela ficou estática sem querer acreditar que era o seu “namoradinho” como ele mesmo o chamava, ele permaneceu em pé e depois foi caminhando até ela e os dois deixaram as regras de lado e se beijaram. Esse acontecimento deu em casamento.

Meses depois, Elisa conheceu uma moça que procurava pela filha que foi seqüestrada. Deu todos os detalhes e ao mesmo tempo fez com que a voluntária da ONG lembrasse do episódio do Café. A partir daí começou a investigação juntamente com a polícia que praticamente tinha arquivado o caso depois de tanto tentar. A organização auxiliava os pais que tinham a criança seqüestrada.

Muita investigação foi feita e a criança foi descoberta e tirada a muito custo dos pais e devolvida aos verdadeiros.

Positivo!

Dessa vez quem leu esse resultado foi Elisa que imediatamente voltou para o Café Paradiso onde se encontrava seu marido e o casal de amigos Rafael e Leila. Ali estavam quatro destinos na esquina das Ruas Poder e Batalha. Enquanto isso nas outras três esquinas do quarteirão um homem quase atropela uma mulher, um jovem dá um beijo roubado na menina que um dia será sua mulher e um homem entrega uma mala suspeita para um homem mais suspeito ainda. Este é o quarteirão e suas esquinas traçando destinos.

FIM

07/06/07

Miguel Rodrigues
Enviado por Miguel Rodrigues em 07/06/2007
Reeditado em 08/06/2007
Código do texto: T517842
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