Pormenores

Quando os pormenores a deixavam infeliz nunca sabia ultrapassá los. A nódoa estava delida, mas estava; o botão da gola desapertada não tinha função mas faltava lá; à carta caíra o selo e, ainda que sem ele tivesse chegado, incomodava-a que não estive colado onde devia. Era uma chata, diziam. Com a idade a tendência era para piorar mas foi nessa fase que começou a perder a visão e o ouvido. A princípio quase sem dar por isso, depois, as letras ficavam tão ambíguas que a tendência era mais adivinhar que ler. Corre comigo era, afinal, bem diferente do come comigo, um dia de amar nada tinha a ver com um dia de danar que ela lia ou pensava ler. Com os sons era muito parecido. Uma surdez seletiva atormentava-a há já uns tempos. Escutava o tiquetaque do relógio da cozinha, mas nada percebia do que o locutor dizia e, para não perguntar e insistir na pergunta, definia-se sem dados corretos. Pagava setenta e afinal eram sessenta, Ele era o novo no serviço e não o noivo da moça que lho apresentava. Foi-se isolando porque o mundo de quem não apreende bem fica diferente e complicado. Depois, quando já nenhuma desculpa servia para deixar de se considerar surda, resolveu enfrentar a surdice, como lhe chamava, e, depois de grandes gastos, encontrou-se a ouvir mais do que o necessário, a tomar sustos sucessivos a fugir de carros que ainda vinham longe… A visão não ajudava. Era uma catarata para operar no ano seguinte e o mundo surgia com o aspeto de quem o via com olhos cheios de lágrimas, baço, ambíguo de forma, mutante. Ou muito se enganava ou a felicidade aparecia menos que o que era usual. A defesa estava em olhar sem se deter no pormenor, escutar só os sons mais fortes e imaginar os que faltavam quando baixava o aparelho ou escutar a melodia do concerto com mistura intolerável de todos os ruídos acessórios a que o aparelho era indiferente. No último recital, ainda sem óculos novos nem aparelhos auditivos, via as bocas a abrir e fechar mas perdia metade dos sons fundamentais e não reconheceu ninguém. Chamaram-lhe pretensiosa por acharem que não cumprimentava porque não queria, porque fingia não ver o que, afinal, não via. Decidiu recolher-se mais e tentar contornar as dificuldades. Um dia acertariam com a altura do som no aparelho, um dia a intervenção às cataratas daria bom resultado e, entretanto, fabricaria a sua cabeça todos os pormenores que quisesse. Se não for bem assim, paciência. Só gente esquisita faz da vida matemática.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 12/04/2015
Reeditado em 12/04/2015
Código do texto: T5204100
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