Ladeiras viniciais

Muitas seriam as distinções do Vinício, mas a que me ficou mais batente e patente foi a de dar nome popular a uma ladeira. Duas na verdade, pois o morro que se subia para lá chegar, partindo do córrego Baiacu, na rua São José, era curto mas de forte inclinação. E quebrando à esquerda, rumo à matriz, se sucedia de outra, menos íngreme, mas de igual desafio.

E ambas, de tempos coloniais, viviam calçadas de pedras arredondas, os pés-de-moleque, numa sinalização de que tanto se respeitava quanto se escorava aquele morro. E a casa do Vinício, conjugada à sua venda, bem à quina, com muro de arrima e até um porão que pouco anima. E justamente a partir daquele ponto, à esquerda, rumo ao centro da cidade, matriz, praça da câmara, casario mais requintado, outra subida, essa porém mais leve, senão nem o coração se atreve, entra em greve.

No rumo oposto, ali uma surprendente rua quase plana, vai-se pro bairro da Olaria. Portanto, ficava situado o Vinício na junção de duas ladeiras, mais íngreme a primeira, e menos desafiadora a derradeira.

E ali, na sua esquina, o Vinício fez vida. Criou uma penca de filhos junto com a consorte Dona Cicilinha, e o imprescindível apoio de uma boa e fiel empregada de quem só faltou para a filharada dar a mamada. Mas quem garante, com aquela meninada?

A venda do Vinício, do lado menos íngreme das ladeiras, resistia à classificação de armazém, mercearia ou outro terém. Era venda no sentido geral, sortida et coetera e tal. Umas três ou quatro portas de madeira, um assoalhado já bem gasto mas resistente, o balcão de madeira e conjunto de prateleiras cor esverdeada já bem desbotados, com o madeirame das portas. E a venda ia sobrevivendo o passar das gerações.

Os filhos fizeram-se moços, criaram seus negócios, suas famílias, enquanto o Vinício se encanecia, mas na porfia é que seguia atendendo a frequesia, que a ladeira baixava e subia.

Escolar, papel almaço, em dias de prova, e forte mormaço, parava lá pra comprar. a um Tamandaré, pois é. Das guloseimas eu ficava só na espia, o crédito não cobria. Mas me contentava em mirar a lateral do passeio onde umas argolas, de um tempo mais antigo, testemunhavam a vinda de clientes a cavalo, geralmente gente que viesse das cercanias.

Ver o Vinício em atividade, atrás do balcão era mirar num homem chão, concentrado por exemplo em preparar resistências para fogareiros, usando arames que moldava em torno de um prego grosso, enfiado na ponta do balcão, com o apoio de uma furadeira manual, enquanto seus dois ou três atendentes cuidavam das miudezas de ensacar e pesar produtos pra clientela, da farinha à vela, da banha de porco ao sabão santaluzia, o pintadinho que pinicava as mãos das lavadeiras.

Muita compra se fazia em caderneta, mais popularmente chamada cardeneta, já que pro operariado, pro ainda mais pobre coitado, a cousa era mais preta. E com as décadas a fio, queimou-se todo o pavio, novas vendas mais modernas se proliferaram, se espalharam, e do Vinício caras e portas se fecharam.

Paulo Miranda
Enviado por Paulo Miranda em 27/04/2015
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