"Por Fora Bela Viola..."

Bonita, simpática, agradável, alguns anos mais nova que eu, aquela menina tinha tudo pra ser uma namorada do tipo que a gente gosta de ter, de pensar em se casar e de ter filhos com ela. E nosso namoro transcorria tranqüilo e feliz, sem desentendimentos, ciumeiras bobas, desencontros ou discussões.

Vivíamos em uma época que o máximo que se permitia a um casal de namorados, quando a moça era decente e de boa família, alguns amassos mais ousados só depois de muito tempo de namoro, e muito às escondidas, sem grandes intimidades mesmo usando-se preservativos. Uma época bem diferente, mas na qual também aconteciam muitas gravidezes indesejadas, muitas moças serem expulsas de casa por terem perdido a virgindade, muita mulher jovem, às vezes quase criança ou criança mesmo, prostituindo-se para sobreviver porque se entregara ao namorado e “se perdera” na vida.

Minha namorada era do tipo toda direitinha, bem comportada, virtuosa mesmo no tocante à intimidade, e eu a adorava apesar e por causa disso.

Éramos românticos, carinhosos, cheios de planos para uma vida em comum em um futuro breve e já falávamos constantemente em noivado e, é claro, em casamento.

Gostávamos de muitos autores em comum, escolhíamos músicas de comum acordo, fazíamos passeios que agradavam a ambos e formávamos o que as pessoas mais velhas diziam ser um belo casal. Ia tudo muito bem. Era tudo muito bom. Na verdade, bom demais para ser verdade.

Um dia, almoçando na casa dela, comentei, um tanto quanto horrorizado, a notícia que lera pouco antes no jornal da casa deles enquanto aguardava que ela saísse de seu sempre demorado banho:

- Que coisa impressionante, gente!! Vocês viram que absurdo esse massacre da Candelária, lá no Rio?

O pai dela foi o primeiro a manifestar-se:

- Não vejo absurdo nenhum, meu caro. A polícia não fez mais do que sua obrigação, que é a de sanear a cidade, seja da maneira que for.

Achei que ele só podia estar brincando. Qual ser dito humano poderia estar de acordo com o extermínio de crianças, mesmo que marginalizadas, abandonadas à própria sorte (ou ao próprio azar)?. Eu não teria acreditado se tivessem me contado.

- O senhor deve estar brincando, Seu Orlando! Só pode ser brincadeira. A polícia mata um monte de crianças indefesas e o senhor diz que é a obrigação dela? Que eu saiba, até hoje ainda não foi instituída nem legalizada, a pena de morte no país. Ainda mais desta maneira sumária, cruel, sem julgamento, e realizada por homens armados, na rua.

- E porquê não? Já imaginou o quanto seria bom esse país se a polícia exterminasse todo tipo de marginal sem ter que prestar contas à justiça? Mas não, não é isso que acontece. Um coitado de um policial mata um monte de pivetes sem vergonha e logo surgem os defensores dos tais direitos humanos para chiar, para botar a boca no trombone.

Comecei a perder a paciência em vista da seriedade com que o pai de minha namorada expunha sua imbecilidade enquanto argumentava.

- Pelo amor de Deus, seu Orlando! Não posso nem imaginar a extensão da tragédia se a polícia fosse autorizada legalmente a matar sem prestar contas à justiça. O que ela já pratica sem autorização já é um descalabro. Imagine se...

- Claro que teria que haver um controle para evitar exageros, mas seria uma maravilha se os policiais fossem autorizados a recolher os mendigos na rua e afogá-los em alto mar. Aproveitando a embarcação e fazendo economia para os cofres do Estado, poderiam levar também toda essa molecada perigosa que vive pelas ruas cheirando cola, roubando, matando, e ajudando os bandidos maiores de idade.

- Nazismo puro de sua parte.

Virgínia, minha namorada, olhava para o pai e para mim em silêncio, sem manifestar-se nem ao menos com alguma expressão facial.

Resolvi calar-me antes que chegasse a mandar um palavrão para aquele chefe-de-família idiota. Mas ele queria conversar, queria continuar expondo sua bela filosofia de vida:

- Eu sei que muita gente acha que é crueldade, meu caro, mas a verdade é que este mundo seria bem melhor se a pena de morte fosse uma coisa bem simples, muito rápida e bastante eficiente: roubou um pão, um tênis, um relógio, um milhão ou um bilhão, a mesma pena: a de morte. Quem rouba um tostão vale tão pouco quanto quem rouba um bilhão, meu caro. Esse papo de que roubou um pão para matar a fome dos filhos não cola. Não justifica. É gente assim que gera filhos bandidos.

Resolvi continuar calado, mas incentivando-o a continuar sua estúpida ladainha. Ele não se fez de rogado.

- Outro dia eu li que alguns rapazes ricos puseram fogo em um mendigo durante a madrugada. Você nem imagina o que li sobre o assunto, meu caro, sobre essa bobagem. Ninguém levou em conta o saneamento que os rapazes praticaram. Tiraram da rua mais um inútil, mais um mau exemplo, mais uma escória da sociedade. Em minha opinião essa meninada merecia mesmo era receber uma medalha.

Eu já havia parado de comer havia um bom tempo e passara apenas a observar as reações de minha namorada, de sua mãe e do irmão caçula. Ao ver que eu esperava que ela se manifestasse, foi a vez dela de não se fazer de rogada.

- Meu bem, papai às vezes parece duro de coração, mas se a gente pensar bem, até que ele tem razão. Há gente que merece viver e gente que não merece. é simples. É só isso. Se você pensar bem, com calma, verá que ele está muito certo em tudo que disse.

- Não, meu anjo, não preciso mesmo pensar muito. Acho que seu pai está certíssimo. Quem rouba um tostão, quem rouba um bilhão, quem é mendigo, quem é criança abandonada, quem não deu certo na vida, deve mesmo ser eliminado para o bem geral da sociedade. Não é assim que o senhor pensa, seu Orlando?

- É assim mesmo, meu querido. É exatamente assim que eu penso.

- E o que é que o senhor me diz do homem que sustenta mal a sua própria casa, sua família que ele diz amar, porquê desvia dinheiro para sustentar uma certa vagabunda em outra casa? Do sujeito que dá cheques sem fundo por causa de jogo de azar? Do sujeito que pede dinheiro emprestado ao namorado da filha e esquece de pagar depois de usar o dinheiro pra beber? O senhor sentenciaria um homem assim à morte lenta? E um vagabundo que inventou uma doença pra se aposentar cedo, bem antes do cinqüenta, pra receber pensão coçando o saco o dia todo pelo resto da vida, roubando dinheiro da previdência social? Será que ele não é mais prejudicial à sociedade do que um mendigo, do que uma criança abandonada que rouba pra sobreviver e que nunca teve uma chance na vida? Eu acho que é. E o senhor, o que acha?

Primeiro o homem ficou vermelho, depois empalideceu. Ver-se retratado daquela forma, em sua própria casa e na presença da família, era coisa que ele não esperava do namorado de sua filha, que sempre fora, até aquele momento, bem educado, atencioso, amável e paciente com todos eles.

Levantei-me, dei até logo no geral e fui andando em direção à porta da casa, mas parei ao ouvir a voz dele, um tanto quanto tremida:

- Mal agradecido e sem educação. Nem ao menos agradece o almoço que teve.

Voltei à copa enfiando a mão no bolso e tirando de lá um papel:

- Não sou mal agradecido não, seu Orlando. As poucas vezes que comi aqui estão muito bem pagas. Fui até a padaria comprar cigarros, antes de vir para sua casa, e vi um cheque sem fundos, seu, exposto na vitrine do caixa. Fiquei com pena do senhor por causa da humilhação e paguei o cheque. Está aqui e fica de presente para o senhor. Presente de despedida.

Jogando o cheque em cima da mesa de almoço, sai novamente e Virgínia correu atrás de mim.

- Despedida, amor? Você não virá mais aqui em casa?

- Acertou em cheio, moça. Não virei mais à sua casa e nem ao seu encontro.

- Essa é boa! Você discorda de meu pai, ofende a ele, e briga comigo também...

- Eu não estou brigando com você. Estou apenas terminando o namoro e, antes que você pergunte o porque, eu lhe explico: porque você deu razão à besta-fera que é seu pai. Filha de peixe...Não me interessa viver, e muito menos complicar minha vida, envolvendo-me com gente como seu pai e como você. Precisa mais alguma explicação?

Ela cruzou os braços, olhou-me fixamente com a expressão zangada e exigiu que eu fosse mais claro em meus motivos.

- Quer mais clareza, minha cara? Pois bem, seja feita a sua vontade: seu pai é um imbecil, um panacas, um falso moralista, um sem vergonha e sem moral, e você o ouve e lhe dá razão. Assim você demonstra ser igual a ele, e como ele me dá nojo pelo modo de pensar, meu nojo agora é extensivo a você. Tchau e bença. Até nunca mais.

Acendi um cigarro, o que não fazia quando ia beijá-la e, fingindo que foi sem querer, fiz com a brasa encostasse no braço dela. O grito foi de dor intensa.

- Desculpe o mau jeito, minha querida. Doeu muito?

- Se doeu...Parece que você fez de propósito...

- E foi. Foi de propósito sim, moça. Imagine o que deve ter sentido aquele mendigo que os rapazes que, segundo seu pai, mereciam uma medalha, deve ter sofrido ao ser queimado. Adeus, filhote de imbecil, e até nunca mais.

Uma pena. Por fora ela era gostosinha mesmo. Mas, por dentro, lá no íntimo, dava bem pra imaginar...

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 11/06/2007
Código do texto: T522717
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