Fumaça

Era uma manhã comum, como outra manhã comum, como outra qualquer. Era como olhar o espelho embaçado do banheiro, depois de um demorado banho com água quente, depois de um café da manhã que estaria por vir. Era como ser esmagado por dentes invisíveis, era como ser destruído por dentro ou por fora. No fim, tanto faz.

Talvez olhar o tempo escorrer como lágrimas da chuva, ou sentir o esfumaçar dos carros no ir e vir. Aquela senhora lá em baixo, aquela senhorinha que caí do ônibus. Morreu atropelada pela condução que a levaria para qualquer lugar.

Passageiro.

Era como uma como dor que não fosse minha ao certo. Talvez por motivos de segurança eu simplesmente me de conta que nada era do jeito que eu pensaria que fosse. Ou simplesmente deixasse ir embora, fluir, sangrar.

Era uma manhã comum, como outra manhã comum, como outra qualquer. Um dia da marmota, interminável, único e imutável. Talvez chorasse na manhã seguinte, talvez enlouquecesse finalmente no diagrama maluco que seria viver na plena pura rotina. Eu era o mais do mesmo perdendo-me no mais puro pluralismo dos fatos. Eu era aquela criança que queria ser astronauta.

Olhar as estrelas era um hobbie.

Agora eu fazia isto entre a fumaça dos carros.

Ouvi muitas histórias sobre o aquecimento global, sobre o fim do mundo, sobre monstros dentro do meu guarda-roupa. Talvez os monstros interiores fossem o que mais me traziam o medo real. O medo de ser eu mesmo. Quem sabe em outra encarnação eu fui mulher ou um grande filho da puta? Quem sabe eu não esteja pagando os meus pecados afundado na fumaça diária. Não sirvo nem para notícia no jornal. Tal coisa me torna mais ridículo do que sou.

Era uma manhã comum, como outra manhã comum, como outra qualquer, era um dia qualquer. A velha morrera há dois dias. Outros ônibus passaram. Talvez este fosse o mote cruel da poesia apedregulhada que a vida nos dá em passos médios. Talvez no silêncio que a madrugada proporciona eu possa elucidar meus pensamentos mais abstratos, talvez nas sombras da madrugada eu possa em si cometer os crimes mais hediondos. Sem testemunha tudo fica mais claro.

Meros pensamentos abstratos.

Era uma manhã comum, como outra manhã comum, como outra qualquer, mergulhado em toneladas de fumaça, mergulhado no câncer que sobe pelo meu esôfago e espalha pelo sofá da minha casa. Se eu tivesse uma esposa eu a agrediria, se eu tivesse filhos eu os expulsaria. Sou o câncer ululante e neurótico buscando se matar com cacos de vidro do espelho que parti com os punhos. Sou a madrugada nervosa, a mosca que pertuba o escritor.

Bebo e desmaio.

Era uma manhã comum, como outra manhã comum, como outra qualquer.

Era uma manhã comum, como outra manhã comum, como outra qualquer.

Era uma manhã, comum como outra manhã, comum como outra qualquer.

Tal coisa repete dia após dia até eu não poder aguentar mais. Tal coisa se torna meu vício maldito, minha virtude sôfrega. Apenas derramo em desalinho, seguindo mais um dia, mais uma manha comum como outra manhã qualquer.