S1 482 Senhor!

A turma em forma aguardava a chamada e as ordens do dia. O sargento, com cara de poucos amigos, chamava os nomes:

- Sebastião?

- Aqui, Senhor!

- Teodoro?

- Presente, Senhor!

- Maurino?

- Pronto, Senhor!

- Jonas?

- Aqui, Senhor!

- Amarildo? - SILÊNCIO... - Amarildo? - SILÊNCIO... – Amarildo, seu bizonho! Onde você está?

Um recruta de cabeça raspada aponta um sujeito de quase dois metros na fila da frente.

- Sargento, este aí é o Amarildo.

- O nojento é surdo?

- Não, Senhor!

- Chame ele, seu estrupício!

O recruta careca sai da formação e bate no ombro do colega.

- Amarildo, o Sargento está chamando!

Amarildo assustado olha para o sargento.

- A Bela Adormecida não ouviu a chamada?

O soldado não ousa responder, faz um gesto positivo com a cabeça.

- Responde seu abobado, também és mudo?

- Hãn?

O sargento chama o cabo e manda tirar Amarildo da formação.

Frente ao sargento que o olha sem nada dizer, Amarildo fica em posição de sentido, preparado para a bronca. O sargento põe-se às suas costas e grita nos seus ouvidos:

- Seu bizonho! Paga cinqüenta!

- Hãn?

- Paga cem!

- Hãn?

- Paga cento e cinqüenta!

- Hein?

- Você é imbecil?

- Não, Senhor. Respondeu Amarildo cochichando.

- Burro?

- Não, Senhor!

- Então afunda o chão até eu mandar parar! No silêncio da turma em forma, ouvia-se a respiração ofegante de Amarildo.

Passavam poucos minutos das sete horas quando começou. Havia passado mais de duas horas e ele continuava a fazer flexões sem contar, num ritmo que deixou o Sargento surpreso pela resistência de Amarildo.

O severo sargento, ante a determinação do seu recruta, começou a fazer flexões com ele numa disputa sem explicação.

Trinta minutos depois, o Sargento, exausto, deitava no solo. Enquanto isso, Amarildo continuava até o Sargento se recompor e mandá-lo parar.

Seu jeito bonachão e calmo, aliado a sua capacidade de dormir em qualquer lugar o fizeram chacota da tropa. Até os oficiais brincavam com sua ingenuidade.

- Amarildo!

- Soldado S1 482. Amarildo às ordens, Senhor Tenente!

- Vá até o setor de armamento e diga para o oficial de dia que me mande uma bomba de creolina!

Amarildo saía em carreira e ofegante e pedia o que o tenente lhe ordenara.

Conhecendo o ingênuo Amarildo, o responsável dava-lhe a resposta para ser levada ao tenente.

- Diga ao Tenente que, no momento, só temos bomba de naftalina.

Amarildo voltava correndo. Assim, ficava de um lado para o outro.

Fazer o S1 482 “se mexer” era bom, porque, se o deixassem parado, dormia.

As brincadeiras com Amarildo chegaram ao conhecimento do Comandante, que questionou o tenente:

- O que está havendo com este moço?

- O problema do soldado S1 482 é o sono, Senhor! Ele dorme em todo o lugar. Já dormiu na guarita de entrada, no serviço na caixa d’água. É incrível senhor, ele dorme de olho aberto!

- Chame-o imediatamente!

Amarildo engrossou a voz e se apresentou:

- Soldado S1 482. Amarildo à suas ordens, Senhor Capitão!

- Soldado, qual é o seu problema? Responda direto, sem embolação! Gritou o capitão a um palmo de sua orelha direita que ficou zunindo.

- Comida, Senhor Capitão!

- Como? Comida?

- Falta, Senhor! É pouca!

- Tenente, o Senhor está ouvindo este homem?

- Sim, Senhor!

- É verdade?

- Não, Senhor!

- Então, coloca no xadrez por três dias e, depois, quinze dias sem folga! A partir deste momento, qualquer dormida em serviço é cadeia, direto! Ouviu, Senhor Amarildo?

- Sim, Senhor.

No tempo em que serviu, Amarildo “pegou” mais de cinqüenta cadeias, quase todas por dormir em serviço. Em qualquer acontecimento estranho no quartel, Amarildo estava envolvido. O pior deles foi a instrução com tiro de metralhadora, que exigia conhecimento, cuidado e atenção no manuseio. O exercício consistia em mirar num alvo a trinta metros de distância . Na sua vez de atirar, não sabia. Durante a aula teórica, ele cochilou e, como dormia de olho aberto, o instrutor pensou que ele estava atento. Destravou, na sorte, a INA e apertou até o final o gatilho. Acertou tudo: o jipe do sargento, o stand de tiro, a parede da cozinha e, por final, o dedão do pé de raspão. A partir deste dia, Amarildo fazia exercício de tiro sozinho. “Ganhou” quinze dias de cadeia, dez por desatenção e irresponsabilidade e cinco por cortar a bota para que o dedão ficasse de fora.

Nas marchas longas de treinamento, foi o único a conseguir dormir andando. Não tinha mais jeito. Começavam a cogitar mandá-lo embora. Para Amarildo, tudo era normal. Até dos insultos que sofria ele achava graça.

Estava de serviço na cozinha descascando batatas - o pior serviço davam para ele. Faltavam, no mínimo, quatro sacos. As pontas de seus dedos ficavam roxas e, por ficar muito tempo sentado num banquinho, levava alguns minutos para poder ficar ereto novamente.

Mas ele estava feliz, estava perto da comida.

A cozinha ficava próxima ao paiol, frente ao pátio de exercícios e, ao lado do paiol, ficavam os estábulos das mulas de carga.

Amarildo ouviu gritos vindos do pátio e soldados correndo para todos os lados. Uma fumaça negra saia pelo telhado do paiol enquanto labaredas lambiam a porta da frente.

Os animais agitados, como pressentindo o perigo, coiceavam as suas baias.

Alguém gritou que um soldado ficara preso no incêndio que, a qualquer momento, mandaria tudo para os ares. Os homens, ao verem o fogo crescendo, corriam como abelhas desorientadas pela fumaça. Centenas de cartuchos, armas, bombas e pólvora estavam guardadas e protegidas por divisões de alvenaria. Não se sabia a extensão do fogo, só o que dava para ver por fora.

Amarildo, sem pensar, corre como um louco em direção a porta lateral do paiol. Arrebenta-a com um vigoroso pontapé e entra. Ninguém ousara se aproximar.

Já se ouvia a sirene do caminhão do Corpo de Bombeiros se aproximando quando uma explosão fez tremer o pátio e um grande rolo de fumaça se elevou. O paiol ficou visível por algum instante e um vulto cambaleando com um outro nas costas apareceu indo na direção da saída.

Dois meses depois, a Cia em forma batia continência a um soldado que salvara um companheiro da morte e afastara a maioria dos explosivos do foco do fogo.

O sargento, ainda convalescendo, não bateu continência porque seu braço direito estava engessado, mas aproximou-se do recém promovido Cabo Amarildo e lhe deu um beijo na face coberta com ataduras.