Parte II

No dia seguinte, minha cabeça dava estalos e eu podia contar os minutos pra que ela explodisse. Mal abri os olhos e milhares de pensamentos aleatórios me invadiram, piorando ainda mais aquela minha ressaca. Levantei da cama com o meu pior humor, fui até o banheiro lavar o rosto e escovar os dentes, tirar aquele resto de cerveja e cigarro que dormiam na minha boca.

No espelho, eu não me achava tão mal. A maquiagem borrada, o cabelo despenteado, mas nada mal...

- E aí, gatinha? Tá boa?

Ri, sozinha, e fiz eco por todos os lados. Eu andava desesperada, com tantos sentimentos indefinidos rondando os meus dias, com tanta mentira sendo jogada na minha cara, como se eu fosse lixo e não pudesse fazer nada.

Essa sensação de impotência sempre me invade, não porque eu me ache incapaz de fazer alguma coisa pra me libertar dessas coisas fúteis, mas eu prefiro conhecer o chão onde estou pisando a entrar em terrenos estranhos.

- Vai dizer, você bebe, faz a merda e agora fica aí.. Trouxa!

Meus diálogos com o espelho duravam horas e eu posso dizer com a maior certeza do mundo que nunca encontrei melhor companhia. Às vezes cruel, mas sempre presente, sempre ótima ouvinte, e ainda que muitas vezes impiedosa e extremamente crítica, muito solidária com os meus problemas fabricados em botequim.

- Deve ser por isso que eles estão se afastando. Você não cansa de se perder.. Você sempre se acha, e se perde, e se acha.. Até quando?

Voltei pro quarto e reparei que ele tinha esquecido a carteira, em cima da cama. Eu quis morrer. Teria que encontrá-lo denovo e encontrá-lo denovo era a última coisa que eu queria. Ele fazia sempre do mesmo jeito: entrava sem ninguém ver, saía sem se despedir.

No segundo mês, comecei a demonstrar meus primeiros sinais de cansaço e ele pensou que eu estivesse querendo romance, mas eu só queria que ele percebesse que eu ainda guardava um pouco de amor-próprio. Pois bem, ele ficou um mês sem aparecer, mas quando voltou foi como se nenhuma conversa tivesse acontecido, e eu nem me atrevi a tocar no assunto denovo.

Eu aguentava calada porque era bom estar ali. E se não fosse aquilo, ia ser o que? Não existia mais nada. Existiam alguns livros, um café aguado, um arroz queimado, o guia de tevê a cabo. Eram os pedaços da minha vida interessante espalhados pela casa.

Tomei coragem, telefonei e quando o interfone tocou, mandei a carteira pelo elevador e voltei pro banheiro.

- É assim que você acha que ele vai te enxergar?

E o outro lado do vidro, quase que instantaneamente, respondeu:

- Ele não vai te enxergar... nunca.

A campainha tocou, atrapalhando a minha conversa.

- Mas que merda, não me deixam em paz!

Ele tinha resolvido subir, eu queria sumir. Mal abri a porta, já foi me enchendo de beijos e abraços. A verdade é que ele falava comigo de um jeito vulgar, sabia que mesmo que não medisse as palavras, o fim seria toda vez na cama. E seria como ele quisesse, quando ele quisesse, onde ele quisesse.

Eu estava me perdendo naquela brincadeira, mas eu não queria parar.

E eu não parei.

Fernanda Galhardo
Enviado por Fernanda Galhardo em 13/06/2007
Reeditado em 13/06/2007
Código do texto: T524743