Crime do Padre Rossi

- Bem vindos à casa do Senhor.

A saudação com sotaque papal convidava os presentes a se acomodarem e, o mais importante, calarem as bocas. Padre Rossi era conhecido pela rigidez e demonstrações públicas de humilhações contra fiéis. Senhoras com odor suspeito, pais de família em trajes de gala, namoradinhos em evolução religiosa, crianças birrentas. Não havia distinção para os acessos de fúria que espumavam da sua fala.

Nem mesmo quando fora apresentado à paróquia da cidade interiorana, em substituição ao Padre Firmino, preso por defender o uso do preservativo, demonstrou a hospitalidade que se esperava. Ouviu as saudações do bloco de mulheres idosas, freqüentadoras assíduas do templo, enquanto bocejava evidente desprezo.

Alguns indignados até tentaram manifestar opiniões contrárias, exigindo que o representante de Deus honrasse com os preceitos que a religião defendia sem distinção ou descaso. Para azar dos próprios, foram os que mais sofreram. Antes de cada missa, Padre Rossi escancarava as confissões “sigilosas” dos seus desafetos.

- Não se preocupe, Dona Carminha. Seu marido a traiu com sua irmã, mas demonstrou com este gesto que se preocupa com a preservação da unidade familiar no casamento. Poderia ter sido com uma quenga qualquer, como faz o prefeito.

A reação era sempre a mesma. Fiéis com culpa no cartório arrastavam-se para fora da igreja, enquanto os que sobravam repetiam o sinal da cruz, agradecendo a benção por não terem os nomes pronunciados. Os mais exaltados, que ameaçavam espancar o padre, eram enxotados sem misericórdia.

- Pra fora, infiéis! Respeitem a casa do Senhor.

Curiosamente, naquele domingo uma figura estranha destacava-se na última fileira. Percebido à distância pelos trajes e trejeitos da capital, o rapaz distorcia-se na submissão interiorana. Padre Rossi notou a figura inédita e sentiu-se tonto por alguns segundos. Os poucos que tentaram acudi-lo foram escorraçados pelo religioso.

- Tirem as mãos de mim!

Continuou a missa desconcentrado, tremendo os lábios, confundindo os textos e bebendo goles fartos de vinho. Perdera o ar intimidante, realçando gestos descoordenados e engolindo a própria respiração. Na distribuição das hóstias entupiu as bocas mais lentas com quantas rodelas sagradas coubessem, enquanto as vítimas da distração comemoravam a fartura como sinal de elevação espiritual. Não adiantava, os olhos refletiam somente a imagem incômoda do intruso.

Assim que abençoou o último fiel, sem nem ao menos olhar o rosto, caminhou atormentado em direção ao jovem bem vestido. A igreja ainda se mantinha entupida de fiéis, ou melhor, espectadores, quando Padre Rossi sussurrou:

- Mas você... não pode ser... você é...

Antes que terminasse o reconhecimento foi surpreendido pela língua molhada do jovem em sua boca, enquanto sentia o crucifixo, fincado com força no peito, queimar a carne. Sem se preocupar com o desespero dos que assistiam a cena, o desconhecido de olhar angelical deixou que o corpo do padre escorresse ao chão, pronunciando com voz doce suas primeiras palavras:

- Sou eu mesmo. Seu coroinha preferido.

Felipe Valério
Enviado por Felipe Valério em 13/06/2007
Reeditado em 13/06/2007
Código do texto: T525006
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