"Nada acontece por acaso" Que coisa mais certa!

Madrugada na serra. Pouco movimento. Pisa firme, tornando as faixas de divisão da pista uma linha só. Carro completo, relógios para tudo. Temperatura, amperagem, pressão do óleo, rendimento do motor, conta-giros e, obviamente, os tradicionais: gasolina, óleo e temperatura. Parecia um painel de avião e isto tudo com luzes néon coloridas. Orgulhoso e confiante.

-Qualquer problema, ele acusa. Disse à mulher quando ela o questionou por viajar à noite.

A viagem transcorria serena e confortável, apesar do frio. O carro também tinha ar quente.

No final da serra, uma reta. Pisa mais, o motor responde de pronto e dá uma “tossida”. Logo em seguida, outra tossida, parecia estar com coqueluche.

Tossia, engasgava, tossiu e parou. Os relógios todos funcionavam, não acusando nada de anormal. Não acreditou e passou a conferir com a mulher.

- Temperatura?

- Está no verde.

- Pressão do óleo?

- Espere que é preciso virar o motor... - no amarelo.

- Amperagem: não é necessário. A bateria tem bastante carga. Isto significa que está carregando.

- Gasolina?

- Esta na letra E.

- E? Grita ele, afastando a esposa para conferir.

- Porcaria de carros importados!

- Por quê?

- E de “Empty”! Significa vazio.

Demorou pra entender. Ao iniciar a viagem, conferiu tudo, inclusive a calibragem dos pneus, porém olhou para o marcador de amperagem que ficava ao lado do marcador de gasolina.

Carro nenhum parou para ajudá-lo.

Não poderia dormir no carro. Estava com a família, a mulher e duas filhas, 10 e 8.

Ao longe, viu uma luz.

Tirou o sapato social, calçou um tênis que retirou da mala e jogou o paletó no banco de trás.

Com um camburão de água mineral, começou a caminhada em direção à luz que, de longe, poderia ser até um vaga-lume acendendo, apagando, acendendo, apagando.

Caminhou quase uma hora a passos largos. Estava preocupado com as crianças e a mulher. Por segurança, deixou o trinta e oito carregado com a esposa.

Chegando mais perto, viu uma lâmpada pendurada numa árvore protegida por um balde vermelho. O efeito pisca-pisca eram as folhas tocadas pelo vento.

Numa placa parcialmente iluminada, lia-se: Gruta do Paraíso, agora sob nova direção.

Por sua longa experiência em estrada, não havia dúvida. Era um prostíbulo.

Não podia escolher: entrou. No corredor de acesso, uma morena com voz de barítono o cumprimentou.

- Boa noite bem, me paga um cuba?

Não respondeu. Foi direto ao balcão aonde uma senhora gorda mexia com os dedos duas pedras de gelo que flutuavam num copo com um líquido verde.

- Boa noite, minha senhora.

- Boa noite se você tiver dinheiro, e senhora é a sua mãe.

A mulher estava bêbada.

- O negócio é o seguinte: estou parado com minha família na estrada por falta de gasolina. A senhora não teria um pouco para me vender?

Mostrou o pequeno camburão.

- Não e senhora é sua mãe. Se você quiser algo mais interessante eu tenho e bastante.

- Não. Respondeu ele. Dirigiu-se a duas moças que estavam sentadas num canto do salão.

- Será que vocês poderiam me ajudar? Preciso de um pouco de gasolina.

- Hein?

- Preciso de GASOLINA!

Ele se obrigou na gritar porque a cafetina aumentou o volume do som, uma música de Bruno e Marrone.

Ia desistir, mas viu, num pequeno reservado, um casal conversando. Afastou uma cortina de tiras de plástico multicoloridas e, colocando só a cabeça, perguntou:

- O senhor poderia me vender um litro de gasolina?

Pediu um litro para ficar mais fácil.

O homem não respondeu.

A mulher ao seu lado, puxando a micro-saia, diz:

- Sai daí moço. O senhor está perturbando. Este freguês é surdo e mudo.

Resignado, chamando todos de santos, saiu recebendo no rosto o ar puro da noite.

Não havia alcançado o asfalto e alguém lhe chama.

- Moço! O senhor tem alguma coisa para por a gasolina?

Viu apenas um vulto na contraluz da iluminação vermelha e respondeu que sim, mostrando o camburão em direção ao vulto.

O vulto vai chegando mais perto e ele vê uma jovem lindíssima.

-Vem, vem comigo que eu vou lhe arranjar gasolina.

Caminharam rapidamente para os fundos da boate.

- O senhor tem uma mangueirinha?

- Para que mangueirinha?

- Para chupar, ora.

- Não, não tenho!

- Vem junto comigo.

Entraram num quarto que media dois por dois - arredondando para cima a metragem.

Uma cama, uma TV preto e branco, perfumes de todos os tipos em cima de uma pequena penteadeira feita com duas cadeiras com um espelho pendurado na parede. Roupas jogadas no chão. Sobre a cama, um puf em forma do passarinho piu-piu.

Nos pés da cama, uma porta estreita por onde ela entrou e saiu rapidamente, trazendo uma mangueirinha de chuveiro.

- Não saia daqui. Ela mandou saindo rapidamente.

O tempo parou naquele quarto. Ligou a tevê. O canal e ele estavam fora do ar. Tinha muitas perguntas ao olhar cada objeto dela, ausente de respostas.

Ela retorna e entrega a gasolina.

- Pronto! Agora você já pode seguir viagem!

Entre surpreso e agradecido, leva a mão no bolso e pergunta:

- Quanto lhe devo?

- Que é isso, moço. Não me custou nada. Roubei da Kombi do Damião!

Não sabia se lhe dava um abraço, se colocava algum dinheiro em cima da cama ou se enfiava a mão no seu grande decote porque seu short justíssimo não tinha bolsos.

Caminhou alegremente até o carro. Seguiu viagem e abastecia num posto quando a esposa lhe perguntou como ele tinha conseguido a gasolina. Respondeu apenas:

- Quem faz o bem, um dia recebe em troca.

Nada mais comentou. Porém, no restante da viagem, eram só lembranças e faróis baixos que desfilavam. Numa delas, relembrou detalhes e reviveu sentimentos de alegria quando fora promovido e transferido para a cidade de Joinville para assumir a direção de uma sucursal da firma em que trabalhava. Afinal, chegara o reconhecimento de vinte anos dedicados. Precisava se afastar um pouco. Vinte anos de casados já levara os dois a certa monotonia. Seu casamento estava como a festa da laranja: tinha de tudo, só não tinha a fruta. Foi uma grande oportunidade para “ficar em dia”. Na chegada à cidade, foi recebido com festas pelos subalternos puxa-sacos que temiam perder o emprego com a nova direção.

Um deles foi seu guia turístico das noites. Em apenas quatro dias, conheceu, literalmente, todos os inferninhos, casas de tolerância, boates e congêneres da região e, devidamente, experimentou as qualidades de aquecimento dos lugares. Não trabalhou, é obvio, nestes dias.

Um dia, um colega comentou que seria inaugurada a melhor boate da cidade. Mulheres indescritíveis, muitas vindas do exterior. Não iria porque estava economicamente prejudicado, problema que ele, o chefe, não tinha.

- Não tem problema, você é o meu convidado.

Naquela noite ele extrapolou. Gastou o que tinha e o que não tinha. Usou o cartão.

Acho que o compositor da música que Martinho da Vila canta se inspirou no lugar:

“Mulheres de todas as cores, mulheres carentes, donzelas, desequilibradas, mulheres confusas e nenhuma delas parecia ser meretriz”.

Nesta noite, sua vida sexual estava devedora.

Os pardais faziam alarido atrás de comida, as “moças” ainda sorviam a última dose. Ele, esgotado, caminhava a passos trôpegos apoiado no ombro do colega.

Antes de chegarem ao carro, foram abordados por uma senhora que lhes pediu um “ajutório” para dar de comer às meninas. Nos seus braços, um bebê, na outra mão, uma garotinha que aparentava não ter mais de cinco anos. O olhar das três transmitia fome e tristeza. Envergonhados, dizem não ter dinheiro. O peso na consciência atravessa o coração e bate no estômago como um elixir milagroso. O porre é curado na hora.

Não consegue ligar o carro. Sentia-se um crápula: “a erva-daninha que nasce no coco do cavalo do comparsa do bandido”.

Olha as horas: nove da manhã. Faz um gesto e chama a mulher:

- Minha senhora, espere!... Olhe, venda isso e compre alguma coisa pra vocês.

Ele não acreditava que tinha se desfeito do seu Rolex de ouro 18, presente de aniversário de sua esposa quando completaram 10 anos de casamento.

No carro, o colega roncava.

Vinte anos se passaram e ele nunca comentou com ninguém o fato. Quando sua esposa lhe perguntou pelo relógio, ele disse que perdera. Ela acreditou, mas não lhe deu outro.

Buracos na pista, a realidade volta. Olha para a esposa e filhas e fala sozinho:

- Provavelmente, alguém lá em cima gosta de mim! Lembra São Francisco: “é dando que se recebe”.

No restante da viagem, não pensou em mais nada. O trânsito estava mais intenso próximo a sua cidade.

Antes de dormir, tomou a decisão de voltar ao local e conhecer aquela jovem que o ajudara. Se ela aceitasse, iria ajudá-la, também.

Nova viagem e, nesta, passaria obrigatoriamente em frente à “Gruta do Paraíso”.

Pensou em comprar umas rosas.

-Não, acho que ela gosta de perfume.

Lembrou-se, entretanto, que já tinha o bastante.

-Uma jóia combinaria com ela, mas destoaria do ambiente.

Decidiu, então, conversar com ela e saber o que precisava ou queria.

Estacionou no pátio da boate. A luz vermelha não estava acesa e, mesmo achando que chegara cedo demais - próximo ao meio dia - dirigiu-se diretamente ao corredor externo onde estavam os quartos.

A porta se abre antes de ele bater.

-Olá, moço! Acabou a gasolina de novo?

Ela aparece enrolada num lençol, cabelos soltos e desalinhados, tão negros que brilhavam ao sol de pino.

- Não, vim é lhe agradecer mais uma vez pelo favor!

- Não tem necessidade, foi um prazer, saia deste sol, entre.

Abriu a porta completamente e, com a mão, conduziu-o para o pequeno quarto que ele já conhecia.

- Você poderia me aguardar um pouquinho? Disse ela, dirigindo-se para o banheiro.

Sentado na cama, pensou olhando a penteadeira enjambrada com cadeiras: Foi bom não ter trazido perfume.

Estava nervoso, ouvia o barulho da água do chuveiro. Ela ainda estava no banheiro e ele lhe pergunta:

- Você é nova aqui?

- Sou. Estou aqui há duas semanas.

Respondeu num tom de tristeza que foi percebido por ele.

- De onde é a sua família?

- Sou de Brusque; aliás, perto de Brusque. O lugar é chamado de quilômetro 12.

- Estou indo para Brusque. Não quer aproveitar e visitar sua família?

- Não acredito! Você me levaria?

- Com o maior prazer. Respondeu e sorriu amigavelmente.

Em poucas horas, se tornaram amigos. Almoçaram juntos e, propositadamente, ele atrasou a viagem alegando que teria que dar uma paradinha aqui ou acolá.

Eram mais de seis horas. Na frente da estradinha que dá acesso a casa, logo na descida do morro do Moura, avistou o lugar. Casa simples, de madeira e muito bem cuidada. Na porta da casa, uma senhora idosa já os está aguardando. Um vira-lata chega correndo, abanando o rabo.

- Dizem que os animais sabem quando as pessoas gostam deles. Disse a mulher, que foi apresentada como mãe da moça.

Sentados em cadeiras com protetores bordados com rendas, conversavam amigavelmente.

A senhora se levanta.

- Vamos filha, prepara um café novinho para o moço.

Sozinho, começa a observar aquela sala. Vê os detalhes da renda das cadeiras, o assoalho limpíssimo, o tapete de fuxico, as fotografias penduradas na parede com o verniz descascando e começou a procurar semelhança com a senhora gorda. À frente, fazendo a divisão da sala e cozinha, um antigo “itajé”. Na primeira prateleira, um relógio despertador cujo mostrador estampa um campo de futebol e, a cada tic-tac, o jogador chuta uma bola também pintada. Um terço junto com um santinho de Nossa Senhora Aparecida, uma estrela-do-mar seca, uma palma, provavelmente benzida no domingo de ramos. Na segunda prateleira, xícaras penduradas e os pires em pé, encostados no fundo. Na terceira prateleira, um rádio portátil, alguns envelopes de cartas e um relógio de pulso. Olhou mais perto para ver se estava funcionando. Não só funcionava como estava certo com o de cima: marcava sete horas e cinco minutos.

Ele sente uma tontura. Apóia-se na cadeira e senta no chão. Sua cabeça roda. As duas, que estavam na cozinha, correm para ajudá-lo. A senhora gorda pergunta:

- O senhor está bem?

Ele não responde. Aponta para a terceira prateleira e, com o dedo indicador em riste, aponta para o relógio Rolex de ouro.

- É melhor o senhor descansar e tomar um cafezinho porque a história é longa.

*************

As viagens de Marcos agora são bem mais longas e demoradas. Em casa, não mais se importa com a ausência das obrigações conjugais; pelo contrário, ajuda a criar circunstâncias para que não aconteçam.

Num apartamento de cobertura, no centro de uma cidade, uma jovem tem uma vida de princesa, sem se importar com a diferença de idade que os separa.

Mais de vinte anos!...

****************