As Luzes da cidade

Eu podia prender a respiração durante horas e ainda sim sentiria os cheiros esquisitos daquela cidade. Eu podia estar perdido por milhões de ruas, mas eu sempre saberia o caminho daquela cidade. Eu poderia ser o ser mais inconsequente, porém a cidade me perdoaria.

A cidade sempre me perdoará.

Talvez eu mesmo fosse o culpado de todas as escuridões, as exclusões. Talvez até mesmo o meu silêncio se formara reformador. Eu buscando encontrar-me entre pedregulhos sinistros e rostos conhecidos. Eu, velho, buscando pessoas conhecidas em fotografias do passado. Aqueles retratos tirados com máquinas ainda de filme e revelados em salas vermelhas. Ninguém revela mais filmes, todos tiram fotos e as mostram em redes sociais para milhões de pessoas verem. Ninguém mas se toca que sua vida está diante dos olhos de outros, e ali, naquele micro espaço sideral, existe alguém que te odeia.

Claro que a cidade me entenderia.

Quando a encontrei ela me entendeu.

O som da sua flauta era tão belo. Eu conseguia escutar com perfeição todas as notas que ela soprava e das quais se perdiam no poluído ar da cidade. Talvez aquela ninfa perdida na floresta de pedra não se importava ao certo com o que estava acontecendo ao seu redor. Quando ela tocava, tudo se transformava em cores, tudo era tão vivo, tão brilhante, tão perfeito. A fumaça se dissipava, os carros paravam de buzinar, as luzes da cidade se apagavam e só as estrelas brilhavam no céu. Estrelas estas que eu nem me lembrava mais como eram. As luzes da cidade se apagavam quando ela tocava sua flauta.

Eu me sentia um pouco mais vivo.

Eu a observava, estava no quarto andar de um pequeno prédio de oito.

Comecei a passar por ali todos os dias. Entre um pão conseguido e um trocado furtado, entre um pecado cometido e outro perdoado, entre um silêncio póstumo e um tiro atirado eu estaria ali, naquela esquina, olhando para o quarto andar e ouvindo-a tocar sua flauta, sua doce flauta que desligaria as luzes da cidade e me deixaria ver as estrelas. Eu estaria sempre ali a escutando, degustando o seu som, ouvindo sua música.

A cidade me perdoaria.

Os carros não me importunavam.

Até a polícia parou de me perseguir.

Por aquele momento eu me sentia sublime, quase flutuante, ela tocava e tocava e tocava, mas eu não via seu rosto. Eu não sabia quem era. Ela era nada mais que uma sombra por detrás da janela, uma luz que as luzes da cidade ofuscavam, deixava pálida e tremente. Não era culpa dela, a cidade também não tinha culpa. Talvez eu fosse o verdadeiro culpado. Não me importava. Ela era uma sombra Platônica, um amor desconvencido.

Sonhei com ela naquela noite.

Sonhei que ela tinha cabelos negros e olhos grandes.

Sonhei que ela me salvava da minha angústia, dos meus pesadelos.

Sonhei que ela não me abandonaria como minha mãe o fizera.

Acordar naquele dia foi tão penoso como apanhar de um guarda qualquer.

Caminhei pelas ruas da cidade, das quais durante o dia eram agitadas e divertidas, procurando um troco, um pão para comer, algo indevido para tomar. Procurei o ópio mais sagrado das ruas e sujei meu rosto para pedir alguns trocados. Outros roubariam, outros furtariam, mas naquele dia eu era pleno. Eu encontraria a minha luz naquela janela do quarto andar. Claro que esperar o dia inteiro passar, esperar todos os acontecimentos corriqueiros de uma cidade grande, ouvir o vir e voltar das sirenes, ouvir as palavras sérias e abstratas de meu mundinho mais que perfeito. Eu havia me tornado obcecado por observar. As luzes da cidade eram um mal a ser destruído e aquela garota possuía a espada.

Sua música me fazia chorar, lembrar-me de uma infância que eu não tive. Lembrar-me de um passado que já se foi. Dos amigos que morreram, dos outros que partiram. Ela tocava naquela janela para quem quisesse ouvir e eu estava lá ouvindo seus sopros, seus sussurros. Não compreendia de quem eram aquelas músicas. Eu nunca conheci Mozart, Beethoven, Chopin entre outros. Eu nunca escutei Mille Davis, eu nunca saberei o que é tocar um piano ou uma flauta transversal. Acho que era este o nome da flauta que ela tocava. Eu não pude ouvir tais canções. Eu estava ocupado, eu estava entendendo como a cidade funcionava como eram as músicas que os carros, os malandros e os bares tocavam. Eu estava atrás da música urbana, a música que toca nas rádios das esquinas. O som dos cassetetes, da violência policial. O som das violas por esmolas, dos pedintes, do estômago vazio. Era esta a minha música, os holofotes que a cidade põe. As luzes.

Eu não conheci Beethoven.

Não me entristecia, ela tocava e eu conseguia ver as estrelas. Sentado ali na calçada com as mãos nos joelhos. Que horas eram? Uma, duas da madrugada? Não me importava, eu não tinha hora para acordar e muito menos para dormir. Eu apenas me deixei levar pelo som, pela música, por tudo que aquele sentimento que há tanto não sentira me deixava envolver. Eu me sentia mais vivo que a cidade, eu me sentia mais potente que a cidade, eu me sentia mais iluminado que a cidade, eu era melhor que a cidade.

E claro que a cidade não me perdoaria.

Claro que minha curiosidade era maior que meu sonho. Eu queria saber quem era a musa por detrás da flauta, à dona dos lábios que traziam as canções mais belas já compostas por homens malucos. Eu comecei a não sair mais dali. Eu comecei a dormir naquela calçada, a buscar comida e voltar para lá, eu comecei a não querer mais sair daquele quarteirão com medo de perder a chance de vislumbrar a minha amada da flauta. Claro que eu só possuía uma silhueta, nada mais. A única informação que eu podia ter era que ela tinha cabelos longos. Nada mais. Observava várias meninas de cabelos longos saírem daquele prédio, mas nunca vi nenhuma delas carregando uma flauta. Nunca vi nenhuma que se parecesse que a mulher dos meus sonhos. No fundo eu queria que fosse minha mãe tocando para mim.

As cidade não me perdoaria.

Um dia a musica cessou.

Esperei acordado a noite toda, e nenhum movimento daquele quarto. A janela se manteve fria e parada, se manteve incalculavelmente sombria. Meu pescoço ficara dolorido de tanto olhar para aquela janela, de tanto esperar aquela luzinha daquele cômodo acender e o som começar a ecoar pelo mundo. A primeira noite eu esperei, a segunda noite comecei a me desesperar. A terceira noite fora cruel. Bebi, e chorei, chorei, chorei. Chorei como um bebê que é abandonado pela mãe, c horei como uma criança pidona. Eu queria minha música, eu queria as luzes das estrelas. As luzes da cidade me machucavam, machucavam minha fragilidade interior, machucavam meu ego. Eu não podia ser maior que a cidade, eu não podia ser mais completo, mas lindo, mas brilhante. Eu era insignificante perante a cidade.

Eu perdi perdão.

No terceiro dia, entre oito e nove da noite, aquela luz acendeu. A sombra daquela menina, sombra conhecida por mim, parou diante da janela. Ela não fazia nenhum movimento, estava apenas parada como se olhasse algo. Eu sentia aquela sombra olhando para mim, mas também senti que ela estava de costas. Aquela sombra parada, inerte. Pensei que estava enlouquecendo, pensei que estava finalmente pirando de vez em ver aquela menina parada ali sem nada fazer, sem nada tocar, sem nada responder. O que era ela, quem era ela? Minhas perguntas brilhavam com cada estrela inventada no céu. Eu gritava no meu interior pela música, eu gritava – por favor, toca! – e ela não respondia. Ela simplesmente parada.

Foi então que algo aconteceu.

Foi então que algo que eu não esperava aconteceu.

Seus olhos negros e comuns, seu cabelo loiro do qual eu não esperava que fosse daquele jeito. Seu rosto claro, meio pálido, meio doente. Não havia sorriso, apenas uma expressão de sono. Ela abrira a janela e olhara para mim sem me ver. Eu era invisível aos olhos das pessoas de bem, ao menos que eu tivesse uma arma. Ela olhou para a cidade, ela viu as luzes da cidade. Ela olhou para o mundo exterior com um ar de apatia e despreocupação. A Rapunzel com cabelos raspados no alto da torre e seu príncipe falido e cego lá em baixo pedindo perdão. Ela era linda da forma que deveria ser. Nada especial, porém linda. Muito magra, me parecia doente.

Logo fechou a janela e partiu a tocar.

E eu me enchi de sonho de novo.

Como senti saudade deste sentimento que me invadia por cada poro. Como eu senti falta de todos os sorrisos, como eu senti falta das luzes das estrelas, as luzes reais. Como era bom deixar de ver as luzes da cidade nem que seja um pouco. Como era bom voar, voar naquela música dos músicos mortos há tantos tempos atrás. Como é que eles ficaram imortais na história? Como eles não desapareceram como todos aqueles que um dia conheci? A música gera imortalidade, a música é a resposta de Deus para a cidade. A música é o que faz o complicado apagar e o simples emergir.

Agora eu sabia como ela era. No tempo em que vigiei aquele prédio eu tinha a visto passar várias vezes. Não sabia quem era, nunca imaginei que seria a garota mais magra e mais sem graça que eu via. Sempre usava alguma peça azul de roupa, normalmente um vestido até os joelhos. Cabelos bem soltos e bem desgrenhados. Acho que tinha uns dezessete anos. Andava sempre com alguns cadernos tortos e seu cheiro, em uma vez que me aproximei até demais, era de perfume já vencido. Ela não fazia parte do eixo comum da cidade, ela não era uma supermodelo de cinema, ela não era uma linda garota dos anúncios. Ela era sem graça, ela era a identidade secreta do super-herói. Seus grandes olhos negros sempre me pareciam tristes. Ela raramente dava um sorriso com força, sempre um tanto apática, um tanto quanto febril.

Voltava para casa todos os dias às oito e meia da noite.

Ia todos os dias para sua escola, pegava dois ônibus e nunca a vi conversando com ninguém.

Morava com uma senhora que deduzi ser sua avó. Também não possuía mais ninguém. Parecia-me ser uma velhinha simpática, me deu até uns trocados de esmola. E sempre, e quando digo sempre eu digo realmente sempre, trazia bolo às sextas-feiras.

Nunca soube o nome destas pessoas. Eu nunc a me aproximei demais, nosso ela era a música. Eram as luzes da cidade, eram os jeitos e os trejeitos. Ela acreditava que tocava para ninguém e havia pelo menos um fã. E todas às vezes com que ela tocava, eu me sentia único, me sentia leve, me sentia música. Era a verdadeira felicidade que me invadia, era a verdadeira força que estava em meu peito e me fazia mais feliz. Eu não precisava mais me sentir menor, me sentir desprezado por todos, eu me sentir maior.

Aquela noite de sexta para sábado foi especial. Era aniversário dela, eu sabia porque o bolo que sua avó trouxe foi diferente. Era bonito, colorido, cheio de detalhes. Havia um dezoito na parte de cima reproduzido em velas. A janela tinha sido decorada por balões ridículos. Eram no máximo sete, oito de cores sem graça. De diferente a noite se caminhou igual. Eu não tinha esperanças que aquela noite haveria música já que era um dia especial para minha flautista particular. Me surpreendera o sopro animado de músicas felizes, eu via sombra daquela menina pulando alegre com a flauta na boca, e logo após via a sombra de uma gorda senhora pulando também. A música era tão alegre, tão feliz, tão satisfeita que eu me sentia pleno, me sentia tão feliz também. Me senti digamos que diferente. Os carros cessaram, as luzes apagaram e só havia nos três dançando na noite sons alegres de uma flauta. Eu dançava sozinho na calçada como bêbado, como um louco que perdera a família há tempos atrás e agora o único rastro de sanidade. Eu me senti pleno e importante novamente, me senti como se fosse ter um futuro grandioso, como se fosse descobrir a cura do câncer ou se fosse ser o mestre de alguma arte-marcial . Novamente cometi o pecado de me sentir maior que a cidade, maior que as suas próprias luzes. Eu me sentia maior que tudo, que todos os problemas. Eu chutei latas de lixo, eu chutei papelões. Eu agredi aquela cidade suja, sem propósito, sem vida, sem alegria ouvindo a mais bela das canções. Eu trouxe a mim mesmo desgraça e felicidade. Era assim que as coisas funcionavam, um prazer repentino trará dor no futuro.

A cidade novamente não me perdoará.

Ser maior do que ela, agredi-la verbal e moralmente era algo inaceitável.

A cidade se vingará.

Suas luzes estão voltadas para mim.

E ela jogou suas cartas me dando a decisão. Minha vida miserável ou a vida da donzela da flauta.

Assim se sucedeu: No mundo basta o encontro certo ocorrer para que possa acontecer algo. Você pode encontrar o amor da sua vida na fila do cinema, você pode encontrar aquele sócio que te levará a fortuna em uma multinacional. Você encontrará o homem responsável por te ajudar com um emprego que salvará sua família no futuro. Você encontrará seu carrasco. Os encontros funcionam desta maneira, a cidade apenas os escolhe e os fazem acontecer de acordo com sua vontade. No fundo, a cidade só quer ver o circo pegar fogo. Ela quer sentir o gosto do sangue nas suas calçadas, quer ver as lágrimas e as luzes dos flashes dos jornais sensacionalistas. Isto alimenta a cidade, isto é a sua ração.

Aqueles homens não estavam armados com armas de fogo. Eram bêbados esfarrapados, tantos quanto eu, que queriam apenas um trocado e um pouco de sexo forçado. Eles seguiam linha reta e atacariam quando tivessem oportunidade. A cidade preparou aquela valsa com uma perfeição impressionante. A batida começou com o atraso no ônibus da minha flautista fazendo-a chegar na rua de sua casa as nove e meia para as dez horas. Um horário complicado diga-se de passagem. Aquele bando que decidira pilhar e destruir hoje estava mais exaltado do que de costume O líder deles, um homem comum com seus problemas, igualzinho a mim, pensou que hoje queria algo mais. Queria estuprar e matar. E como um meteoro em rota de colisão aquele grupo caminhava na direção da flautista e a flautista na direção do grupo. Eram três homens ridículos que fariam o mal, eram três homens que estavam surfando na irresponsabilidade da justiça, a mulher deficiente da cidade. A valsa estava feita e em pleno andamento, eu vi, eu previ, eu senti o que poderia acontecer. Eu sabia que ela não aguentaria aqueles três, eu sabia que não tinha nada de valor e tirariam a sua vida de maneira mais grotesca possível . Eu sabia que era culpa minha, era a cidade me punindo. Eu sabia que aquela era minha hora. Eu corri, corri em disparada do trio morte, corri como um louco sem noção. Eu os impedi de virarem aquela esquina e darem de frente com a flautista. Ela passou sem notar nada de anormal. Ela continuou seu caminho. Aqueles homens não entenderam, acharam que eu era um bêbado maluco e decidiram me punir. Consegui arranhar um deles como algo não efetivo. Senti o primeiro chute no estomago e cai. Começavam a me chutar, senti minhas costelas quebrando uma a uma. Meu braço partindo, meu crânio abrindo. Eu ouvia a música, a flauta daquela menina na minha memória. Ela já deve ter chegado em casa. Eu desviei o meteoro da rota e colisão e eles não irão mais se encontrar.

Eles me chutavam.

O meu sangue jorrava e a cidade sorria em prazer. Era sua punição. Sua sentença.

Meu olho furava.

Meus dentes eram quebrados.

Meus ossos esmigalhados.

Meu riso contido.

Meu sacrifício pela flautista, meu sacrifício por aquela que deveria ter sido minha mãe. Meu sacrifício na cruz pela virgem flautista na torre.

Rim perfurado.

Tímpanos destruídos.

Afogando-me no meu próprio sangue.

A última coisa que eu vi foi seu rosto. A ultima coisa que eu senti foi a sua música. Entre aquela chuva de chutes e gritos e sons e dores, entre aquele martírio. Aquela sensação de sumir, de morrer eu me sentia pleno. A cidade que se exploda, eu sou melhor do que ela, e morrer sem pedir perdão a deixaria furiosa. Mas me acovardei, perdi perdão novamente em medo dela tentar por estes loucos em rota de colisão com minha amada. Preferi morrer em silêncio enquanto ela tocava flauta não tão distante dali preferi simplesmente me deixar ir entre todas as pancadas. Eu a amei e ela nunca soube de minha existência, eu fui seu único fã, seu filho e ela nunca soube que eu estava lá. Dentre tantas luzes da cidade ela se tornara a minha única luz da cidade.