A Filial

Heloísa carregava um histórico de vida inusitado. Vendida pelos pais para um casal americano, fugiu antes que conhecesse os mercenários que a compraram. Tornou-se hóspede assídua de abrigos imundos, distribuídos no mapa da indecência. Quando não era espancada por outros flagelados, era alisada pelos responsáveis nas instituições. Percebeu que a rua escancararia suas feridas, mas estava disposta a largar as contradições assistenciais a que estava submetida. Antes, arrancou metade da orelha de Josué, seu bolinador fixo, enquanto o estimulava a acreditar em seus gemidos. Atropelou as portas do abrigo cuspindo caroços de sangue e nunca mais voltou.

Foi procurando nutrientes, na lixeira em frente à multinacional presidida por Clóvis, que fora percebida. O homem de terno fino, executivo com negócios em toda a Europa, contrastava com a beleza autêntica, empoeirada no rosto primitivo e insuportavelmente sedutor da pedinte. Clóvis perguntou ao segurança do prédio sobre a constância daquele comportamento.

- Olha, Sr. Clóvis, ela aparece sempre no mesmo horário.

- Há quanto tempo?

- Já tem um mês que ela fica com cara de fome zanzando aqui na frente.

- Mas como eu nunca percebi nada?

- Ora, Sr. Clóvis! Ela é uma mendiga imunda como todas as outras.

- Não, Ademir... asseguro a você que ela é diferente.

- Bom, o senhor que sabe.

- Faz o seguinte. Pega esse dinheiro e compra um lanche caprichado.

- Mas...

- Faz o que estou mandando, Ademir.

- Já que o senhor tá dizendo...

Como um cachorro acariciado pelo dono, Heloísa continuava a perambular na porta da empresa. O segurança, preocupado com o sustento dos próprios vícios, não impedia que ela repetisse o ritual. A pedido do chefe, a cada dia as vantagens aumentavam. Comida, roupas novas, salões de beleza, mais comida, cobertores. Clóvis apaixonara-se pela miséria que alimentava e decidiu sustentar suas emoções. Percebendo que a jovem sentia-se mais à vontade em frente à empresa, perguntou:

- Qual o seu nome?

- ... Heloísa.

- Você sabe que sou eu quem está fazendo tudo isso por você?

- Er.... sei... sim... brigada.

- Você quer ter isso a vida inteira?

- ...

- Responda. Você quer ter isso a vida inteira?

- Mas... como... eu não...

- Quer casar comigo?

O “sim” tímido da moça foi abafado pelo acesso de tosse do segurança, quase afogado na própria indignação e perplexidade. Naquele momento, o executivo só sonhava em dividir todo o luxo a que estava acostumado com aquela beleza carente. O altar seria o caminho mais apropriado. E assim foi.

Clóvis ainda sentia os grãos de arroz chovendo sobre os cabelos. Sua esposa Heloísa não exalava a alegria inerente às recém-casadas. Nem mesmo a leveza contida, contemplada nas mais tímidas, era perceptível em sua face. Existia apenas um sutil olhar de desconfiança, inédito na percepção do novo esposo.

- É tanta coisa junta, os preparativos, a correria, os convidados, a surpresa, que ela deve estar meio perdida. – defendia-se Clóvis à própria mãe, na porta da igreja.

A sogra contraía as pálpebras flácidas e discordava enérgica:

- Nunca fui com a cara dessa rapariga! Ô coitada sem-graça.

- Calma, mãe! Você sabe como a vida dela foi difícil.

- Você e essa idéia absurda.

- Eu a amo, mamãe.

- Meu Deus, meu filho. Escolher esposa assim?

- Já disse que ela é especial.

- Você vai acabar se arrependendo.

- Chega, mãe. Hoje é o nosso casamento.

Despediram-se dos últimos convidados e foram para o melhor hotel da cidade, seguidos pela música das latinhas. Amaram-se como adolescentes, descobrindo cada centímetro de pele que escorregava no suor aquecido. Aproveitavam a lua-de-mel com desejo escaldante quando Clóvis gemeu um choro pausado e caiu na cama com os olhos estatelados.

O corpo só foi descoberto na manhã seguinte através do grito desesperado da camareira responsável pela limpeza da suíte presidencial. Como o caso envolvia um alto executivo, a polícia chegou às pressas ao hotel. Intolerante e percebendo a falta de vantagens para si próprio, o delegado fechou o caso com veemência:

- Ataque cardíaco. Manda o rabecão subir.

- Mas e a...

- Porra, Dutra! Tira esses repórteres daqui!

- Positivo, chefe...

Escondida sob a cama, Heloísa pôde ouvir o zíper do saco preto deslizando. O pacotinho com pó de mata-rato fora sugado pela descarga. Com as mãos trêmulas, ainda indignava-se com a traição, olhando inconformada as últimas ligações no celular de Clóvis.

Todas para a mesma vagabunda. Todas para a filial da Alemanha.

Felipe Valério
Enviado por Felipe Valério em 15/06/2007
Reeditado em 15/06/2007
Código do texto: T527750
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