826-O MEU PÃO DE CADA DIA - Auto-biográfico

O MEU PÃO DE CADA DIA

O PÃO está definitivamente inserido no meu subconsciente, por diversas situações inesquecíveis que marcaram indelevelmente minha infância e meninice. Era alimento básico, primordial, a uma família de imigrantes italianos e seus descendentes, bem como o vinho feito em casa e as macarronadas.

Éramos sete em nossa casa: Francisco (Tio Gordo), italiano, imigrante, o mais idoso da família. Meu pai, Pedro, minha mãe, Maria, eu e Arthur, meu irmão. Armando e Carolina, irmãos de mamãe, solteiros. Todos amantes de uma boa mesa, apreciavam todas as comidas feitas por mamãe e madrinha, como todos os sobrinhos chamavam Carolina, por ter batizado os sobrinhos mais velhos. Tomávamos juntos todas as refeições: café da manhã, almoço, café da tarde e jantar.

Tio Gordo era proprietário da loja de secos e molhados e atendia os fregueses com ajuda de papai e mamãe e como a loja ficava na parte da frente da casa de morada, estava sempre conosco nas refeições. Papai era marceneiro, tinha uma pequena oficina no quintal da casa, e vinha para as refeições passando as mãos pelos cabelos e pela roupa, para retirar pequenas aparas de madeira, ou o pó da lixadeira. Tio Armando, alfaiate, trabalhava a um quarteirão de casa, e uns cinco minutos antes de a comida ser levada à mesa, mamãe me ordenava, ou ao Arthur:

— Vai chamar o Armandinho, diz que a comida está pronta. — Embora o almoço fosse todo o dia à mesma hora – pontualmente às 11 horas da manhã — Tio Armando devia ser chamado sempre.

As refeições eram sempre acompanhadas por pão. Feito em casa, por mamãe e madrinha aos sábados. Não havia uma receita por escrito, e sim a “maneira de fazer”: os ingredientes misturados sem medidas, mas sempre nas quantidades exatas. O fermento, a farinha, o óleo, água, ovos e sal, tudo era colocado na hora certa e o pão, depois de “crescido” era enrolado à maneira italiana. Assados em forno cuja temperatura era “calculada”, resultavam em peças sempre da mesma qualidade, ficavam sempre do mesmo tipo: por fora, numa cor parda acastanhada nas pontas, apetitosa, e amarelos por dentro. O cheiro era um verdadeiro perfume que punha água na boca de quem o sentisse.

Só muitos anos mais tarde é que aderimos ao pão de padaria, quando mamãe e madrinha deviam evitar o calor do forno e o esforço em sovar a massa manualmente, em grandes bacias. Então, o pão era entregue ás seis da manhã, pelo Pedrinho Mentira, que o deixava na janela,pois ainda não havíamos aberto a casa, embrulhado numa pequena folha de papel de embrulho — embora fosse papel usado para embrulhar alimentos, era um papel de segunda categoria, cheio de pequenas manchas coloridas. A janela era ao rés da rua, estava ao alcance de qualquer transeunte, mas nunca soube de roubo de pães. O pagamento era mensal, feito ao mesmo Pedrinho Mentira, assim chamado por gostar de caçar e exagerava nos relatos de suas caçadas.

No café da manhã, tomávamos café com leite, e comíamos pão com manteiga. Que delícia insuperável! Tio Gordo, italiano de bom apetite, apreciava uma sopa de pão, no café com leite. Ao almoço, era salada de alface, tomate e pão, muito pão. À tarde, algum sanduíche feito com carnes sobradas do almoço e meu pai adorava sanduíche de jiló. Ao jantar, junto com as sopas de macarrão ou as minestras, mais pão. De vez em quando, havia uma extravagância: pane tochiado, que consistia em pão molhado em vinho com açúcar. Pão atochado seria a tradução, pois a fatia de pão era enfiada copo adentro, e saia pingando vinho.

— Cuidado, não deixa pingar na toalha, que mancha! — era mamãe ou madrinha gritando com Artur ou comigo.

Durante a segunda guerra mundial, pelos anos de 1942 a 1945 houve o racionamento de farinha de trigo, pois naqueles tempos o trigo era importado por navios da Argentina. Então apelou-se para a mandioca e para o fubá, que eram misturados à massa de pão. As padarias restringiram a produção ao pão francês, que era de farinha de trigo, mas agora já não tão pura. Em casa, o pão ficou mais amarelo devido ao fubá, e não tão saboroso.

Passados os tempos de garoto, eis-me no ginásio cujas mensalidades eram um peso no orçamento da família. Procurei “o que fazer” na parte da tarde e encontrei um trabalho. Relacionado com pão!

Seu Júlio Símaro vendia pães na parte da tarde, em sua loja de secos e molhados. Fiquei encarregado de trazer da Padaria Dramis, diariamente, à uma hora da tarde, os pães recém saídos do forno. Ainda estavam quentes, eu os apanhava no momento em que eram tirados do forno, e colocados num saco branco, de pano — sacos de farinha de trigo, usados também para fazer camisas para homens. Eu era garoto miúdo, franzino, e ombrear aquele saco com cem pães não era tarefa fácil. E pães quentes! O percurso, de dois quarteirões apenas, era através do Jardim Novo, mas nem por isso menos sofrido. Um peso que queimava as costas!

Foi meu primeiro trabalho remunerado: nos dois ou três primeiros meses, recebí em espécie¸ isto é, ganhava um pão por dia, no valor de um cruzeiro. Mas logo combinamos um salário mensal de 30 cruzeiros. Fiz este trabalhado durante os anos em que estudei no ginásio, dos 11 aos 14 anos.

Pelo sabor, pelo prazer e pelo esforço em lidar com pães, estou marcado definitivamente pelo pão nosso de cada dia.

ANTÔNIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 14 de fevereiro de 2014

Conto # 826 da Série 1.OOO HISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 16/06/2015
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