A MISTERIOSA MENINA

Coisas misteriosas e estranhas acontecem. E como!

Vamos do início:

Meu avô, Chico June, orgulhava-se de ser descendente do famoso Capitão June, nome pelo qual era conhecido um chefe de bando indígena, da nação Borune, chamado Karengnatnuk. Seu raio de ação ficava na região do Salto da Divisa, na fronteira entre Minas e Baía.

Acredito que me avô, apesar de se dizer católico, praticava o culto de seus ancestrais, ainda que sejam para mim totalmente desconhecidos. Mas me passou, junto com as aventuras de meu tetravô, o sentimento que há “muito mais coisas no ar além dos aviões de carreira”, como dizia o Barão de Itararé.

Falo nisto, mergulho um pouco nas origens, porque sem conhecê-la seria difícil entender o meu avô, e talvez a mim, sensível à magia natural, por ser um neto que bebeu na mesma fonte do que ele.

Morávamos então em São Domingos de Arassuaí, hoje Lapa, situada no Vale do Jequitinhonha, Nordeste de Minas.

Ao Norte, sertão. Era para lá que, no tempo do estio, meu avô viajava sem data para voltar. Sumia naquele mundão afora, montado no seu burro de nome Fumaça, sem dar explicações. Suas incursões me deixavam muito curioso.

Um dia me deu na telha de acompanhá-lo, de me embrenhar com ele pelas trilhas afora, que iam se somando umas às outras sertão adentro, se entrecortando, se espalhando como se fossem as veias de um corpo sem fim. Aventura arriscada, para quem não soubesse se orientar naqueles ermos pela grande bússola da natureza. O menos avisado, o menos treinado, certamente se perderia, e ficaria rodando de um ponto a outro, sujeito a passar fome, sede e frio. Pois, na seca, aquelas paragens são quase como um deserto: dias bem quentes e noites de tiritar os dentes, e água mesmo, só nas veredas e num poço ou outro, pouco conhecido. Terrível para quem não teve a precaução de trazer uma boa capa ou coberta, ou água na botija.

Quando me convidei , senti que não fui muito bem recebido. Meu avô me disse que o lugar para onde iria não poderia ser frequentado por quem não conhecesse os seus segredos. Que nele habitavam estranhas forças, e que por isto, de certo ponto em diante, eu teria que ficar só. E ficar só, naqueles sertões, era muito perigoso. Havia ciladas escondidas, animais peçonhentos camuflados nas pedras e na vegetação, mas a pior de todas, estava “ na solidão destes chapadões: a cabeça começa a derivar”.

Mas insisti e seguimos.

Não tenho como descrever o que vi naquele serão sem fim e perdido: não me foi dado o “engenho e arte” , como dizia o velho Camões; o que posso dizer é que nunca vi um céu tão azul, no amanhecer, nem tão vermelho alaranjado com enormes estrias de um azul negro, no anoitecer; nem sei o que dizer dos veados, dos tamanduás e dos sinais das onças pardas, nem das seriemas, nem do canto de pássaros os mais diversos, nem de seres furtivos, escamoteados no cerrado, sejam vaqueiros encourados, tímidos e desconfiados, sejam índios remanescentes de antigas tribos vagando em pequenos grupos pelas fímbrias de seus perdidos territórios imensos. Mas posso afirmar que não existem céus mais límpidos, nem tão estrelados. Ali agente sente de verdade a imensidão do universo. Os estranhos piados dos bacuraus, gemeções dentro da noite, acentuam a atmosfera misteriosa que nos envolve em seus braços invisíveis, e aguçam o sentimento de solidão e medo que assalta os corações dos raros viajantes que passam as noites dormindo ao relento. Consta que os velhos tapuias habitantes daquelas bandas, cavavam um buraco e se deitavam dentro dele, sem fogo, nem coberta, nem nada, como se fossem bichos ao relento.

Eu estava só há alguns dias.

Como combinara com meu avô, nos separamos a certa altura. Ficamos de nos encontrar a coisa de cinco léguas à frente. Ele desenhou na areia o Jequitinhonha, indicou a região do Salto, e nesta, o Retiro do June e disse: “Aqui”. Pouca coisa , convenhamos.

Não demorou muito para que me sentisse como que enjaulado, ainda que numa jaula invisível, algo muito esquisito, fruto da imensidão silenciosa que nas horas altas, como no meio-dia, nos sufoca, como se estivéssemos presos numa cela ínfima. Uma sensação inexplicável , sentir-se enjaulado na imensidão a perder de vista.

Estava sentado numa pedra, quase a chorar, sem saber bem porque, nem para onde ia, quando vi uma jovem olhando-me como se me reconhecesse. Estava ali, de modo inexplicável. Como poderia uma moça tão bem posta aparecer assim, tão de repente, vinda do nada? Aparentava seus quinze ou dezesseis anos, a minha idade. Uma criatura linda, cheia de vida; seu sorriso revelava dentes perfeitos , sua pele morena comprovava seu distante sangue índio e seu olhar, penetrante, acolhedor, logo desanuviou o meu espírito. Fiquei a fita-la, sem acreditar no que via, assombrado. Ela me disse: “Meu nome é Joana; fique calmo João, que vou lhe ensinar o caminho".Respondi: "Como sabe que me chamo João e como chegou sozinha neste fim de mundo?”. Ela não esclareceu, apenas disse: “Vim apoiar você. Sei que se sente muito só e com medo”. “Só sim, medo, não”, apressei-me em responder - não ia dar parte de fraco diante da moça. Ela sorriu, mas não me contestou; apenas indicou-me o caminho que deveria seguir para me encontrar com meu avô. E, como apareceu, desapareceu.

Vaguei por uns dois dias, na direção que ela me indicara, e encontrei meu avô perto de um poço. Contei-lhe a história. Ele observou: “Não te falei que nestes ermos a cabeça varia?”. Fiquei quieto, preferi o silêncio. Sabia que não tinha “variado” coisa alguma. Ruminei a experiência com meus botões. E depois de algum tempo não pensei mais nisto. O que não tem explicação, explicado está.

A vida continuou rolando.

Meu avô morreu há muitos anos. E o sertão já não é mais o mesmo.

Na verdade, lá se vão mais de sessenta anos deste fato acontecido. Ele me veio à mente, porque hoje, no metrô, dei novamente com a tal moça. Um susto danado. Vestia-se da mesma forma que na aparição anterior. Sabia que era ela. Continuava exatamente a mesma. Mas ao mesmo tempo pensava: “Não é ela, não pode ser ela. Se estiver viva, é uma velha como eu. Estarei ficando louco?”. Mas reconheci o seu olhar pacificador e profundo , a cor de sua pele e seu inesquecível sorriso. Ela veio em minha direção e disse: “Como vai, João?”. Um frio percorreu a minha espinha.

E então me ocorreu que, por razões muito diferentes, eu agora estava só e com medo. Algo pesava em meu coração, como sentira tantos anos antes no ermo do chapadão. E que ao revê-la , como acontecera outrora, um sol iluminou os porões do meu espírito. Imediatamente soube qual o caminho a seguir.

Joao Milva
Enviado por Joao Milva em 28/06/2015
Código do texto: T5292801
Classificação de conteúdo: seguro