O país do mutatis no mundo mutandis

Pensavam que viviam num país, mas este se tornava mais parecido com uma prisão muito estranha. As pessoas não se sentiam aprisionadas. Eram mantidas distraídas o tempo todo. Tinham sempre a atenção presa em algo que as fazia esquecer a condição de prisioneiras; muitas vezes eram assuntos relacionados ao gozo dos prazeres físicos, quase sempre acrescidos de sabor vindo de emoção causada pela transgressão .

Mas era a cizânia semeada entre os moradores a principal responsável pelo vigor de tão estranha condição. A alguns era sugerida suposta má fé de outros a respeito de determinado fato. Surgia, então, um sentimento de repulsa, de revolta, que, crescendo, era compartilhado com outros, que o ruminavam e passavam à frente, acrescido da própria fermentação. De tal forma, grande parte do tempo era gasto no cultivo da cizânia. Embora as nuances das antipatias criadas fossem bastante variadas, elas se agrupavam em duas partes que abrangiam todo o território. Cada parte alimentava a contenda com elogios entre si, em número e intensidade diretamente proporcionais às atribuições de maldade a qualquer ação dos integrantes da outra parte.

De vez em quando os ânimos ficavam mais exaltados, e os guardas eram chamados. Os dois lados odiavam os guardas porque a cada grupo era sugerido que eram aliados da outra parte.

Enquanto isso, os habitantes tinham o comportamento pautado como se crianças fossem. Por todos os meios, recebiam informações que conduziam, aos poucos, seus pensamentos de modo que os conceitos a respeito de questões unânimes no imaginário coletivo iam sendo removidos enquanto outros, quase antagônicos, eram implantados, de acordo com o interesse da administração. A própria cizânia que isso podia derivar era largamente usada em tal proveito. Polêmica ajuda a difundir ideias, e ninguém quer ser taxado de retrógrado diante de ideias novas.

Insuflada por falsos elogios, a vaidade dos habitantes ajudava os carcereiros a implantar novos valores, o que os tornavam cada vez mais poderosos. Eles determinavam o que era bom e o que era ruim; o que poderia, ou não, ser feito. A “administração” já era capaz de determinar que os pais não podiam mais corrigir os filhos pelo uso da habitual palmada, e se as pessoas podiam, ou não, fazer uso do tabaco… O poder da administração já entrava dentro dos domicílios e na vida particular. As pessoas entregavam a liberdade, o poder de escolha sobre os fatos mais relevantes e próximos da sua dignidade em troca de prazeres e de conforto, físico e psicológico. Consciências eram entorpecidas por barbitúricos verbais.

As notícias percorriam todos os ambientes. Havia uma casta dos habitantes que era especialista em divulgar as novas, a respeito dos acontecidos. Os integrantes desta casta se relacionavam bem com os dirigentes do sistema de administração e com os líderes de todos os grupos que compunham a população.

Muitas pessoas apreciavam ouvir o que diziam os noticiosos e ficavam observando as análises que faziam da situação. Gostavam de se entreter com as contendas, uma vez que os profissionais da notícia sempre tomavam o partido de um dos lados, mas, no fundo, todos apoiavam os carcereiros. Fomentavam as discussões dando subsídios para debates calorosos; eram movidos a atenção. Quanto mais seguidores tinham, mais importantes eram.

Alguns, cada vez mais raros, chamavam a atenção para a condição de prisioneiros em que todos se encontravam. Estes eram combatidos por todos os lados. Não era bem-vindo tratar de assunto tão desagradável. A maioria já pensava: a vida é tão maravilhosa, existem tantas maneiras de se desfrutar de prazeres, e vem alguém tentar atingir consciências com tema tão dolorido!…

Os carcereiros eram sempre ovacionados como promotores de todos os prazeres. Até que surgiram umas notícias a respeito deles… Os noticiosos disseram que os guardas haviam descoberto que os poderosos usavam os recursos dos trabalhos dos habitantes em proveito próprio, e, também, nas artimanhas para trazer todos embevecidos com as benesses, enquanto se apoderavam cada vez mais fortemente de todas as formas de exercer o poder.

Foi disseminada a desconfiança a respeito dos carcereiros. Os noticiosos, se debatiam sem, contudo, apontar uma saída para o grande problema. Eles próprios, acostumados a apontar os defeitos dos líderes dos grupos, não conseguiam declinar, com todas as letras, a situação dos carcereiros, que os alimentavam com palavras e benefícios. Sempre "mordiam e assopravam”.

Os recursos geradores dos prazeres estavam se escasseando e a atmosfera do lugar se tornava espessa, densa como uma geléia, e as pessoas se sentiam quase engessadas, sem esperança de novos prazeres e sem capacidade para reagir e mudar a situação. Havia já quem falasse de desemprego, inflação e desabastecimento o que aumentaria a já quase insuportável criminalidade, em todos os segmentos.

No entanto, nenhuma esperança se fazia ver. Alguns, dos primeiros a desconfiar, andaram descobrindo que não só o seu país estaria em tal situação. Alguns arquipoderosos tencionam comandar todo o planeta no nível de mentes e corações. Para conseguir tal intento, têm dividido o planeta em feudos cada vez maiores, nos quais as novas ideias de prazer e subserviência são implantadas por meio da franquia ideológica que, para assegurar o poder nas mãos dos que o detêm, é sempre mutatis mutandis…