O AMANTE

Sentou-se ao lado da moça a quem amava loucamente. Um amor amadurecido durante anos, amado de longe como fazem os tímidos. Vira-a crescer junto com sua paixão, que, enorme, recusava seu olhar para outras moças. Amara-a sem se declarar, resolvera-se, enfim. A moça o viu sentar-se a seu lado. Lembrou-se daquele olhar fixo que clamava continuadamente pelo seu, da liberdade vigiada que tal olhar lhe permitia, do tempo em que fazia o jogo, se sorrisse ele, deliciado, sorria. Se fechava a cara via-a espelhada no rosto dele. Fazia-a triste e o entristecia. Servia-o como chacota às amigas, que amavam o tal jogo. Ficou fora de si quando lhe deram o senso da realidade naquele brinquedo infantil.

 Ele te ama!

Primeiro suspirou profundo, segurando os seios que adolesciam, ruborizada. Depois, escarneceu.

 Um jacu, isto é o que ele é!

Entretanto, sempre que se sentia desprezada por algum príncipe que a encantasse, dava-se ao olhar dele. E, para machucá-lo, mostrava-se languidez desejosa em gestos plenos da fantasia da mocidade que se anunciava. Os anos se passaram e aqueles jogos se automatizaram como parte do seu ser. Há tempos as amigas nada diziam, desde que rechaçou com violência a observação de uma delas.

 Você o ama!

O rapaz deixou crescer aquele amor que o emudecia quando perto dela. Reprimia-se por ter sabido que ela o tinha em conta de um ser desprezível , inseto morto que ofuscava sua luz com aquele olhar de peixe morto. Quando prestes a desistir, com o vazio do peito pela dor de uma separação imaginada, dava sempre atenção aos amigos.

 Desdenho de mulher é amor invertido!

 Será?

 É! Depois, você nem se preocupa, ainda, com a aparência. Arrume-se! Ela vai cair a teus pés!

Já nota-se o seu aprumo no vestir, o seu cuidar, o seu falar esmerado como lhe disseram serem costume na família da amada. Então, entrega-se novamente às poesias, frases pueris rimadas no ritmo louco dos seus sonhos. E, quanto mais a via, mais a amava, mais a desejava.

Nunca conversaram. Ela o evitava, buscando seus pretendentes. Ele, quando a via, não conseguia articular palavras, que se calavam na secura da boca e se apressavam acompanhando o acelerado coração. Ele, os amigos iam se escasseando, tomados pelas noivas nos altares, embutidos em firmas com viagens prolongadas, rarefazendo suas solteronices, pesando a solidão. Ela ficara titia de duas bonitas crianças, desesperançada de casamentos, que tantos escolhera sem se decidir, procurando o homem que idealizara. Suas irmãs ficavam com quem a escolhia, que desistiam da espera. A contragosto, resolvera aceitá-lo em conversa desinteressada, quem sabe não fora só má impressão guardada da adolescência? Quando se lembrava dos anos passando entusiasmava-se com a ideia. Quando dele lembrava o olhar pegajoso, amofinava-se.

Vê-lo ali a seu lado trazia a sensação de derrota, gostos amargos e necessidade de voar, para longe, onde não a conhecessem nem de ouvir falar. Vê-la ali a seu lado em resposta a seu pedido, com aqueles olhos que o estudavam minuciosamente, trazia gostos metálicos, coração e pensamentos acelerados, desejos, sonhos, vontades, contenções, ereções que procurava disfarçar cruzando as pernas, o ar sem querer sair de seus pulmões, lentificando sua fala, fazendo-o parecer o indeciso que era. Ele, cuja alma tanto conversara com ela na noite anterior, em prelúdio para este encontro, agora sem conseguir lhe dizer qualquer frase, mesmo as decoradas. Em silêncio demorado, ela suportando a repulsa que sentia, prendia-se no banco da praça, que idiotia aceder à sua insistência no encontro! Ele, sufocava as vontades de deitar-lhe abraços beijos, de nada lhe dizer a não ser que amo, amo, amo e amo, deixava o tempo passar, na esperança que ela falasse alguma coisa que ordenasse a seus pensamentos falem-se! Eram tantas coisas para dizer que traduziriam seus sentimentos, tantos anos sonhando, tantas folhas escritas passando vertiginosamente por sua cabeça. Não sabia por onde começar.

Quando a moça, suspirando, consultou seu relógio entendeu palavras não ditas e apressou-se ajeitar um modo de iniciar seu discurso declaratório. Devia ter feito qual os cavaleiros andantes de outrora, que pareciam ter os textos decorados na ponta da língua. Não, seria obsoletamente cafona... Não tinha palavreado na ponta da língua, pois não eram costumes atuais as declarações de amor. Não poderia simplesmente lhe dizer eu te amo. Tem cheiro de falsidade. Não caberia lhe dizer eu te amo platonicamente! Toda mulher sonha com um amor mais prático. Não, não pode iniciar falando de amor, tem de falar calmamente de tudo que sonhara nestes anos todos, e ir, lentamente, se aproximando do clímax, onde as mãos dadas se dizem nos amamos, como por instinto.

Outra consulta ao relógio, a moça lhe diz. Aquilo o atordoa. Os pensamentos voam mais céleres por todo o céu de sua mente. Não havia controle algum, a pressa o desorientara. Ela nunca imaginara acordar daqueles sonhos, poderia tê-la algum dia para si, e, no afã de iniciar um diálogo decide por captar os pensamentos, puçá-los e dizer espontaneamente o que lhe viesse à boca.

 Aí eu arranjaria um emprego no Rio de Janeiro, tão logo eu completasse meu curso...

 Como? Não entendi! Ela retrucou.

 Arranjar um emprego, ganhar dinheiro... Estas coisas.

 Ah!  E calou-se de boca e de olhos.

O rapaz, perdido em seus pensamentos, parou de procurar manter algum na consciência o tempo suficiente para que a eles se aglutinassem as palavras adequadas, foi os dizendo tal como nasciam e apenas aqueles que encontrassem o caminho de sua boca.

 Mas eu gosto mesmo é de cavalos, criação, andar...

A moça o encarou estupefata. Seus olhos brilharam de curiosidade. Talvez devesse lhe dizer algo, mas desistiu. Olhou o relógio mais uma vez e disse em tom desanimado.

 Está ficando tarde!

Pensando perceber pesar em suas palavras, os pensamentos do rapaz decidiram entrar na era atômica. Tinha de lhe dizer tudo, pois ali não poderiam ficar indefinidamente. Os pensamentos ajudavam criando tudo, sem esforço algum, os sonhos, o futuro, o amor platônico até então, vingaria como o maior de todos os tempos, e na ânsia de ajudá-lo se produziam aos borbotões. Não sabia como começar e não conseguia mais controlar seu pensamento. A moça, olhando novamente o relógio, decididamente lhe diz.

 Você... Me convidou para me dizer uma coisa importante... O que é?  Seca, fria, inerte.

Atabalhoou-se. Abriu a boca e deixou caírem aos pensamentos as palavras que pudesse, sem escolhas. Eram pensamentos demais e se antes atrapalhavam-se ao sair pela única boca, e estreita, agora picotavam-se mais ainda ao encontrarem o ar que os circundava. Não dava para sair tudo conforme gostaria e não poderia também desperdiçar a oportunidade, com tanta dificuldade íntima conseguida.

 Eu nasci de parto normal... Sei que vou ficar muito rico, minha profissão está atualmente quero ter no mínimo dois, homens, mas se forem meninas tive um problema quando criança que quase me prejudicou e não deixou minha família é importante, somos descendentes do Ministro de Justiça do imperador morreu no ano passado...

 Quem?

 Quem o quê?

 Quem morreu?

 Meu avô.

A moça o olhava encantadamente assustada e ele encantado por sua atenção continuou.

 A vida no Rio de Janeiro é muito boa... Mas depois tudo se conhecer as cidades vizinhas, final de semana na praia a gente vem sempre visitar seus...

Notou que ela consultava novamente o relógio e julgou-se muito lerdo.

 Só uns trinta dias depois para o sul, se estiver nevando não tem importância a igreja, não podemos ficar esperando muito nascer com problemas. Você pode dar como quiser, não tenho muitos a convidar. Na mesma noite a gente viaja se quiser a data escolhe morar no Rio a gente estará sempre...

A moça levantou-se primeiro indignada, depois condoída.

 Me desculpe, mas não daremos certo juntos... Você é muito confuso!

 Mas... Sente-se, espere. Deixe eu te dizer... Eu não posso deixar de te dizer!

 Já está tarde, diga logo!  Ela impaciente, em pé.

O rapaz resolvera sintetizar tudo em poucas palavras e dizê-las com tanta sinceridade que seria impossível não convencê-la.

 Eu sou louco...

 Isto eu já percebi!  A moça lhe deu as costas, virou-lhe o rosto enquanto se afastava e completou:  Mas não se incomode, você sempre foi bem compensado, meio estranho, mas compensado. Adeus! Foi bom ter conhecido você assim tão de perto, adeus!

O rapaz ficou sem saber o que fazer. Mastigou palavras enquanto ela se afastava graciosamente no crepúsculo de suas esperanças. Decidiu por cuspi-las com toda força, e, como ela já estivesse longe, ficou de pé, com as mãos acentuando seu berro.

 Por você!

A moça lhe deu adeusinho rápido, apressou os passos e desapareceu.

Gilberto Profeta
Enviado por Gilberto Profeta em 12/07/2015
Código do texto: T5308894
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