Meninos de rua – a escuridão

Sentado com as costas, o menino observava a grande ferida aberta entre a barriga e o peito. Aquilo parecia uma camisa desabotoada. Mas doía. Doía tanto que doía na gente.

Ao olhar os transeuntes com os olhos abrugalhados, era só dor. A sua feição de socorram-me causava o desespero, o próprio mal-estar. Um choro contínuo franzia a testa daqueles que espreitavam de longe aquela cena de horror. Nada se fazia. E até o tempo corria daquilo.

Era noite. Muito da noite já se passava. Com fome, com sede, esvaindo-se em dor, o menino estendia a mão trêmula na esperança de auxílio. Gesto inútil. Por ele apenas a pequena Medusa. Uma cadela vira-lata, guardiã e companheira dos últimos dias. Chegara ali para repartir a sua desgraça com aquela pobre criança. Desnutrida, via na criança o seu espelho humano. Um tanto melhorada, claro. Não havia chagas pelo seu corpo.

Um cheiro forte se desprendia daquele corpo raquítico e esmorecido. Não conseguia se levantar da grande porta da igreja da Rua do Imperador. Não tomava banho há dias, o que piorava em muito sua saúde. A remela tomava conta dos cantos dos olhos e fazia companhia às lágrimas que secavam seu franzino corpo pueril.

Os carros já se escasseavam pelas horas da noite. Ninguém mais queria ausentar-se de seus pensamentos para pensar naquela cena de horror. As moscas não davam trégua. A criança era o próprio alimento. Não se sabia por que insetos com hábitos nitidamente diurnos acossavam constantemente o menino de rua. Certamente eram iguais em desgraça. Alimentavam-se daquilo que durante o dia não conseguiam arranjar. Tomavam a seiva encardida que escorria do corpo débil e convalescente.

Num momento de lucidez, o menino em sua rebeldia e delinquência fitou o céu. E lá observou e teve seu momento de alumbramento. As estrelas luziam o céu escuro e abriam um infinito que agora se aproximava da criança enferma. Seus olhos tremiam na imensidão da rua, na escuridão da noite. A pequena Medusa observa aquilo e sentiu uma estranha tristeza subir-lhe as patas. A palidez do companheiro refletia num pequeno feixe de luz estampado numa poça d’água a sua frente, alumiado pelo poste de alumiação. A cachorra, que naquele momento era também guardiã e travesseiro, tremeu. Os seus olhos caninos verteram uma lágrima pagã. Não havia mais nada a fazer. O céu era um convite que a criança não recusou. Viu as estrelas se apagando. A mão trêmula perdendo a força. As dores perdendo a força. Seus lábios ganhando força maquiaram um último sorriso e adeus.