NA VITROLA

O quarto era de apertamento, mas de classe metida. Mesmo assim, dividia o banheiro com o quarto ao lado. Ficava no 17º andar, bem no canto do prédio, de modo que recebia o sol da manhã. Tinha um armário embutido, com portas em perfis de alumínio e acabamento em Formica, imitando cerejeira. Ia do chão ao teto, o que não é grande coisa. Dois metros e quarenta, no máximo. A porta de entrada tinha um nicho só para ela, formado pela profundidade do armário embutido. A cama, encostada na parede oposta, fazia parte de um móvel maior que continha gavetas, como se cômoda fosse.

Valéria sentou no carpete apoiando as costas numa das portas do armário. Dobrou a perna esquerda, deixando a outra esticada. André pegou o violão e sentou na cama. Apoiou o instrumento, displicente, na coxa direita que cruzara sobre a esquerda. Entreolharam-se. Ela, tirando um saquinho de um dos bolsos, perguntou: “tem seda?”. Para sua surpresa, junto com os primeiros acordes, André balançou a cabeça para um não. Guardado o saquinho, a música ia pela metade, quando Valéria esticou seu pé um pouco mais para tocar o do André. Bastou. Em minutos estavam despidos, rolando pelo chão, chutando violão, armário e relógio. Agradável fusão adolescente, de hormônios, líquidos e cheiros.

Após os atos, ainda despidos, sentaram-se no colo um do outro, colando os troncos e se abraçaram. De modo que o beijo foi longo, suado, com direito a um pedaço do céu. Ela foi tomar banho enquanto ele foi checar o ambiente. Não sabia quanto tempo tinham levado naquela suposta aula de violão. A mãe tinha saído e a empregada devia estar passeando o cachorro, portanto ele não precisaria explicar o banho da professora. Valéria não tinha nada de professora e, quando muito, tocou flauta uma ou duas vezes no primário. Mas, como a estória da professora colou, disso sobrava uma grana, que dividiam felizes. A Valéria era doida, isso sim. Pirava a cabeça do André, de dois em dois minutos. Inventava coisas, mudava de opinião, trocava de roupa e de ônibus. Isso quando não trocava de roupa dentro do ônibus, entre um ponto e outro. Depois descia. André passava maus bocados.

Assim que a empregada chegou, desceram com uma desculpa daquelas ditas rapidamente, sem fôlego, que a empregada certamente não saberia repetir quando perguntada. Algo como uma senha para a liberdade. No caminho do cinema pegaram seda na padaria da esquina. Esperando, no ponto da Diógenes Ribeiro de Lima, André lembrou ter deixado a carteira do colégio sobre a tampa da vitrola. A liberdade tem seu preço uma vez que não poderia voltar até o apartamento. A esta altura sua mãe já estaria de volta e o cinema com a amiga deixaria de existir. Ia ter de pagar inteira ou jantar com os pais.

“Que vitrola?”... tá lôco?! ... é toca disco (rindo e pulando)

“Como, que vitrola... do lado da cama... as gaveta!”.

Sobre aquele móvel ficava a vitrola Garrard com duas caixas acústicas, tudo interligado por um amplificador Gradiente. Cada coisa de uma cor, de um tamanho, comprada em ocasião diferente. Ela quis ver: “Depois do filme....”, “Não, agora!”

Ocirema Solrac
Enviado por Ocirema Solrac em 18/06/2007
Reeditado em 12/07/2010
Código do texto: T531443
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