BARBA, CENA: MÃE

CONTOS que não ganharam concurso, mas também não foram lidos por comissão julgadora. (de 1992?)

http://gilbertoprofeta.blogspot.com/p/barba-cena-mae-chegavaas-tres-filhas-no.html

Chegava. As três filhas no colo, no trem vindo e vindo, árvores, postes, cidade-zinhas paradas, paradas, buraco escuro e esfumaçado no verde da montanha, escurecen-do, clareando. Um nó no peito apertando espinhos em coroa, aumentando e aumentando naquele café com pão interminável zoando na cabeça, pondo-a dentro de si. Quando vê, a noite fria e estrelada, um tiquinho à toa de lua, o cruzeiro de luz ao longe e nos postes, vez ou outra iluminados em fila pelo clarão do trem. Os olhos molhados. As crianças dormindo no duro do banco; devia ter trazido uma coberta, um lençol que fosse. Esfre-gou a mão no peito ardendo. Suspirou profundo e agoniado quando viu, na curva escura do trem, caixões puxados pelo cavalo doido resfolegando e relinchando. Encomendou a alma a Deus, como fazia há anos de aflição. Que protegesse as meninas. Pôs um sorriso triste nos lábios; confiaria. Houvera quem sofrera mais que ela, e sabia ser Dele a coroa de espinhos. Elas seriam felizes. Deixara para trás a morte do marido e a fome que cui-dara delas desde então. Gostaria de ter deixado, também, aquela coroa de espinhos. Nunca se conhecera diferente tantas as horas em que buscava dela o Dono e se via cru-cificada a Seu lado como o mau. São horas ruins pipocando minutos que a rebentavam por dentro. Enxugava os olhos pensando-os sangrando. Nos panos brancos que trouxera para lhe servir de lenços apenas umidade. Puxou para dentro lágrimas que teimavam em escapulir pelas narinas.

― ´Tá chorano, mãe?

― Não fia, ´tô não. Dorme quinda ´tá longe... ´Cê ´tá cum frio?

― ´Cê ´tá chorano mãe!

Limpou-se do catarro, rezou um padre-nosso para espantar o fogo em que se fez seu coração. Esfregou álcool no peito. Vigiou as meninas dormindo. Procurou olhares, estranhos, todos escondidos, cerrados. Esticou-se no banco e chorou para dentro, engo-lindo a água dos olhos, traindo-se pelo barulho do ar e lágrimas nas narinas escancara-das. Veio a raiva quando o fiscal a sacudiu.

― ´Tá passando mal, dona?

― Sangue de Jesus tem poder! Sangue de Jesus tem poder!... Vá a merda!

Aos olhos pasmos do homem, virou-se para o lado e fingiu dormir.

De manhãzinha, as quatro perdidas na estação... Comadre Dália ficara de busca-las e nada. Teria alugado o barracão e gasto com as coisas de casa a parca economia que lhe mandara pelo correio. Agora o sol crescia devagarzinho, movimentando a cidade. Na jardineira sacolejante, o motorista e às cinco se distanciavam do centro da cidade. As últimas carroças entregavam leite nas casas, cestas de pães deliciosos andando no ar e parando nas portas. Sós e silenciosas, apenas o ruidoso motor fazendo os olhos semicer-rarem e se abrirem vezes seguidas; o sono acordava dentro de si. Comadre Dália quebra aquela pasmaceira:

― Ali é minha casa.

A jardineira entrou na terra nua, levantando poeira do chão. Mais um pouco e o motorista gritou:

― Chegou!

Andaram caminhos a pé; um barracão perdido no mato. Um conforto mínimo, comadre Dália aproveitara bem o dinheirinho. Uma mesa, quatro cadeiras, dois catres com colchão de capim socado, vasilhame, latas para buscar água na bica e dois penicos, um grande e um pequeno. No mais, um endereço, roupas para lavar. Descansaram e comeram sobras na casa da comadre. O peito também a esquecera; sabia que voltaria. Era assim e assim se aceitava. Lavou roupas no córrego da vila, às vezes cantando can-tigas de sua mãe, outras chorando em um vale de lágrimas. Um dia, tamanha a dor, dei-xou cinzas em cruz nas roupas passadas e dobradas. A patroa fez o sinal da cruz, não pagou e ainda exigiu um trabalho para quebrar aquele mau agouro. Voltou confusa, sem saber o como daquelas cruzes. Não as fizera, não, nunca as teria feito; não brinca com as coisas de Deus. Tanto problema e privação e, agora, sem roupas para lavar e passar. Oh! Deus misericordioso, o que vou fazer? A maiorzinha crescendo depressa, está para formar, a misturação chega a qualquer hora. Comadre Dália teria de lhe ensinar a viajar pela cidade. Pediria de porta em porta roupas para lavar.

Na casa das patroas, comida com muita pimenta. Não deixavam levar um pouco para as filhas. Em casa, a fome das filhas trazia a dor no peito, tanta, cada vez mais tan-ta, até à vontade de chorar. A roça, êta saudade matadeira! Num vai não, fica, não volta não, aqui é ruim, mas está bom. Num vai não, fica. As filhas precisam de roupa, têm escola com merenda.

― Quero que volte lavar roupa mais não, dona.

― Pro mode do quê dona? ´Tô lavano mal?

― Não, ´cê fica falando sozinha, assusta as minhas meninas.

― Num ´tá inmin, dona. Num ´tá inmim!

Quanto mais sem roupa para lavar mais aquela coisa no peito. Tinha que procurar todo dia. Saía cedo. Recomendava tudo. Arruma as camas. Faz o que tem pro almoço, arroz com angu. Não aceita bala de homem. Não sai do portão pra fora.

Na rua. Era grande a dor. O demônio queria arrancar de si a coroa de espinhos. No chão estrebuchando-se, um homem a ajudava levantar-se.

― Eu te mato, fé da puta! Te esgano! Sai daqui, tinhoso!

A gente juntada a seu redor ela nem via. Dois homens segurando-a, cuspiu em um deles.

Depois, veio em casa os homens da radiopatrulha, com o papel na mão. Atônita, quis devolver.

― Sei lê não, seu ôme.

― Sua mãe ´ta no hospício. Ficou doida na rua. ´Taí o endereço.

Comadre Dália foi tirar de lá. Veio zonza. A maiorzinha dava os remédios nas horas recomendadas. A cada comprimido, ficava mais tonta. Xixi e cocô sem querer. Não comia. Parecia morta naquele olhar parado. Comadre levou a maiorzinha para a cidade. Trabalhar em casa de família. Tomar conta de criança. Com treze anos, carecia responsabilidade. Mãe não estava trabalhando. Com ela longe, mãe sem tomar remédio foi acordando aos poucos, devagarzinho a cada dia. Comadre Dália cuidou.Um dia mãe levantou e comeu sozinha. A maiorzinha trouxe o primeiro dinheiro. Encontrou capim seco espalhado, os catres sem colchão. Procurou mãe. Estendendo roupa no varal. Os panos dos colchões dependurados.

― Qui é isso, mãe? ´Cê ficou doida de novo?

― ´Tá pricisano pano pra mode fazê vistido. Priciso de saí, arranjá roupa pra lavar.

― Mas era os colchão, mãe, ondié qui a gente vai dormí?

― Dorme nos pau do catre. Vô pô folha de bananeira.

A maiorzinha limpou a casa do pó de capim. Na venda, deixou o dinheiro por um punhadinho de mantimento. Filha vai embora, trabalhar. Só volta com um mês. Traz um dinheiro, mãe está feliz, sorri e brinca. A tristeza chega com o entardecer. Precisa trabalhar. Deita-se e conta o tempo pelas fisgadas no peito, uma enfiada na outra, um terço, dois terços, três terços, reza-as. Não têm fim. Anda pelo quarto. A aflição sobe do peito à cabeça. Sai para o terreiro, andando. Corre para o mato, corre pelos matos, foge e corre, corre e foge. Para e aquela coisa ainda está ali dentro. Foge e corre, está na cidade, na avenida, gritando. Rasga as roupas, quer arrancar aquela dor. Morde o guarda, que a subjuga e julga, é mais uma doida, o mundo ´tá cheio de gente doida!.

― Mãe ´tá no hospício de novo. Preciso de í tomá conta das menorzinha.

― Posso depender de você não. Qualquer problema em casa, você me deixa na mão. O emprego, se você for, não carece de voltar.

A maiorzinha em casa recebe a mãe de alta do hospício. Fome, piolho e pulga. O remédio de ficar abobada. Xixi, cocô e banho. Limpar a baba. Enfiar comida na boca. Sem poder ir trabalhar. O remédio acabou. Aos poucos mãe foi se levantando, cuidando de si e da casa. Comadre Dália levou a maiorzinha para a cidade. Empregada doméstica. Cuidado com homem... muita atenção, muita lábia... começa passando a mão... e filho na barriga, na sua menina, na sua, e ele some. Agora você formou, qualquer brincadeira dá filho, não deixa homem nenhum botar a mão. Em casa mãe melhorou, está rindo à toa. Vai poder vir em casa toda semana, domingo.

― Maninha, cadê a mãe?

― Sumiu! Nós acordô e ela tinha sumido.

― ´Vô perdê o sirviço de novo, meu Deus!

― Vai não, maninha, eu tomo conta da menorzinha.

― Intão ´tá... Tem coisa pra comê?

― Tem não, a gente inventa. Pode í pro seu serviço, a gente inventa.

Mãe desapareceu sete dias. Apareceu com um balaio na cabeça. Repolho, abóbo-ra, abobrinha, inhame, batata. Balaião grande e cheinho.

― ´Cê vem de onde, comadre?

― Da roça. Tia mandô lembrança e abraço procê.

― ´Cê foi de quê, comadre?

― Fui e vortei de a pé. Passei cerca e fugi de boi. Cheguei viva e vortei viva. Num pudia deixá as fia morrê de fome. Sabia qui os parente ia ajudá.

Comadre Dália limpou as feridas vistas por entre os trapos do vestido. Andou sete dias seguidos! Tivesse pedido dinheiro para a passagem do trem, daria. Mas onde a comadre tem a cabeça? Deixou-a cozinhando para as filhas, que cresciam. A maiorzinha, satisfeita com a mãe quieta dentro de casa, vinha sábado, noitinha chegando.

― Qui ´tá fazeno, mãe? ― a maiorzinha anda o caminho no terreiro cheio de farinha queimada e mãe agachada plantando alecrim.

― ´Tão pono mau oiado nimim, fia. ´Tão falano qui ´tô doida de novo.

― Quem, mãe?

― Eles, fia ― levantou-se apontando as luzes que já se acendiam na cidade.

― Tem gente lá não, mãe! A maiorzinha não vendo além da cerca.

― Êêê! ´Cê também, fia? Eles, eles fia! Eles!

Na segunda saiu. Tinha de lavar roupa. Aquela tristeza à tardinha. Arranjar ser-viço. Tinha medo de o capeta vir buscar de novo a coroa de espinhos. Desceu, a pé, para a cidade, de porta em porta. Tem roupa para lavar? Tem não, dona. Tem roupara lavar? Tem não. Tem roupra lavar? Tem não. Um tiquinho de comer, tem? Tem não. O sol suando de andar de lá para cá. Espinhos ferroando o peito, um chamando o outro e vi-rando uma dor só. Aquilo crescendo. Gosto de sangue. O capeta viera e lhe tampa os olhos com as mãos em fogo. Grita aflita, esfrega o peito, unha-se, berra. Olha a doida! Olha a doida! Olha a doida! A meninada corre atrás da cachorra perdida no meio dos carros e suas buzinas. Rasga-se e desnuda manda chover pedras nos meninos. A sirene rindo a gargalhar como o próprio demônio. Na delegacia deram guia para o hospício de Barbacena... Lá longe... Depois disso, seu homem, nunca mais vi ela... minha mãezinha! Ficou lá oito anos. Juntei dinheiro, quando recebi uma carta ela havia morrido, contei e não dava para ir. Nunca mais vi... morreu de tristeza... presa no hospício... mas deixou comigo esta coroa de espinho... dentro do peito... que está crescendo e crescendo, seu homem. Nunca mais vi as maiorzinhas também. Sumiram. Aí me entreguei... para ficar assim, filho na barriga... quero filha... para quando for a hora eu dar para ela esta coroa de espinhos... Ah! Seu moço... chega... quero falar mais nada não.

Gilberto Profeta
Enviado por Gilberto Profeta em 20/07/2015
Código do texto: T5317101
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.