A Enfermeira & O Prefeito [CAPÍTULO 04]

A Empresa

A observação do céu cintilante é maravilhosa, pois nunca pensa-se que possa haver aí uma camada latente, que no mais tardar despencará com toda a força da natureza. A esperança tem seu valimento até as nuvens esgarçarem e as brumas matizarem toda à sua volta. Assim, logo foi percebendo Morgana que tal céu de sua expectativa já sofria a descoloração, ao dar-se conta que o tempo sempre correra e as averiguações do bondoso prefeito não vingavam como a cortesia com que a atendeu.

E este parágrafo acima, que serve como prólogo do ceticismo de um cidadão para com sua política, deve-se à observação paulatina que a boa moça teve da degradação do ambiente hospitalar. Decerto as mãos santas de seu nome já enrugavam. Porque de lá se foram pacientes por falta de atendimento, e estes tinham dores e não havia medicamentos. A pior experiência foi o testemunho da morte.

Tomou alarde e foi-se novamente ao gabinete, ao qual sua fachada cimentada e levemente cabal, não dava a lembrar os descascos e as manchas da frontaria do fatídico hospital. Ao entrar, notou que logo dissimulou a atendente malacafenta, tudo para não lhe dever atenção.

- Boa tarde, eu tenho de falar com o senhor prefeito. – Anunciou-se, chegando à bancada da aras.

Os olhos da assistente ergueram uma expressão pejorativa, mas diferente dantes, houve um fulgor de ódio que lhe disparou as pupilas amarelas, tudo pela audácia de Morgana. Somente tomou o gancho.

- Siga para o mesmo lugar. – Indicou-lhe, fazendo que olhava abaixo com alguma outra ocupação.

Morgana também não era casca fina, e sem um soslaio seguiu para o corredor dito, também não volvendo o rosto para a outra secretária. Somente chegando à porta que já conhecia e tendo autorização concedida pela voz interna.

Ao entrar deparou-se com o mesmo perfil desleixado com largas roupas.

- Dona Morgana, em que possa servi-la hoje?

- Com todo o respeito, o senhor de nada me serve, mas sim ao hospital.

- Dona Morgana, espero que a senhora não esteja atrás de banzé comigo, que estou lhe atendendo com toda a educação.

- De forma alguma, e já lhe disse isso na última visita, quando falei que não queria bafafá, mas só que o senhor resolvesse as nossas péssimas condições hospitalares, pois gente está morrendo!

Calou-se o prefeito, tomando a fundo a gravidade do clamor de Morgana.

- Aqui. – Entregou-lhe um cartão com endereço. – Este é o local exato da empresa que devia prestar esses serviços. Digo que a senhora só perde tempo em vir prosear comigo, vá até lá e explique a situação, pois todos os dias eu ou alguma de minhas secretárias tentamos cobrar algo, mas a resposta é sempre um adiamento. Sugiro que vá buscar seus direitos no departamento certo, que infelizmente, não é no gabinete do prefeito. Estamos sendo passivos até agora, tudo por termos esperança que o que nos dizem seja verdade, e logo os pacientes serão tratados como seres humanos; se brigarmos, tudo só irá atrasar mais. Sinto muito, mas também estou de mãos atadas.

Apesar de todo compadecer que parecia haver no bondoso prefeito, Morgana incitavasse com certa expressão baça, como um escarnecer dos olhos. Não estava nada satisfeita com as últimas informações, e já começava a sentir o peso de uma nação burocrática para consigo mesma.

Assim, não dando três dias, fora a boa mulher ao endereço citado na Rua Quinze de Novembro. Um estabelecimento lembrando a frontaria de um breve condomínio de sobrado, com paredes brancas e telhados caju.

Tocada a campainha, uma guria de saiote lhe saiu na soleira.

- O que deseja?

- Olhe, eu vim a mando do prefeito.

Isto soou estranho para a moça, contudo, pacote do prefeito era bem vindo, ainda que fosse um Cavalo de Tróia.

- Pode entrar.

Então Morgana tudo lhe informou, e diferente das assistentes do gabinete, esta moça parecia ouvir com a mais terna das atenções. Por fim, a guria não sabia dar pitacos no assunto, mas rapidamente contatou o doutor.

Morgana aguardava, e quando esta estava inquieta, a guria lhe indicou para que entrasse à direita.

Foi a moça de Campo Belo e deu-se de frente com um sujeito bastante mais apresentável que o prefeito. Portentoso a um terno escuro de casimira e com a face emoldurada por cabelos penteados atrás. Este era um perfil puramente cortesã.

- Por favor senhora, sente-se.

Morgana, desta não mais escondia o complexo pelas roupas vulgares e baratas, puxou a cadeira com extremo melindre e pura educação, e contou tudo ao doutor, com a voz afável e que não ecoava pelas paredes, tudo o que ali fora fazer.

- Olhe, na verdade, nem sei se devo ficar proseando muito, pois vai ser perda de tempo. Pois, veja isso. – E o doutor sacou um envelope, e retirou-lhe uma documentação.

- E o que significa? – Perguntou, examinando.

- Dona Morgana, o contrato foi honrado desde o primeiro dia de autenticado. E este é um dossiê contra o prefeito, tudo por desvio de dinheiro.

Calaram-se então, pois palavras já não eram mais úteis, somente o processamento em mente que era necessário para assimilar. As pupilas vermelhas inundaram. A boca tremeu. As mãos gelaram. O rosto efervesceu.

- Desculpe doutor. – Justificava-se, já com a voz fustigada. – Desculpe aborrecer.

O doutor, que era um advogado que comandava aquele escritório e representava os direitos de sua companhia, já ficava entendido do bom senso que levou ali aquela pobre mulher, e lhe retratou nas cores mais vivas e mortas o real suplício do verdadeiro cidadão. Somente podia lamentar, pois sua empresa havia honrado o acordo, e de lá não vinha a culpa da precariedade.

Unicamente boa sorte aos tristes olhos desta boa enfermeira.

Vinícius Thadeu
Enviado por Vinícius Thadeu em 22/07/2015
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