A ESTRELA DALVA

A mulherzinha, pois era tão pequena, de cabelos cacheados, franziu a fronte, num gesto característico seu quando se aborrecia, ao terminar de montar a cama. A cama custara a caber naquele quarto acanhado e quando finalmente coube, a porta do quarto não abria, pois encontrara a grande cama como obstáculo.

“Que merda! Pobre não pode mesmo ter coisa boa”, pensou a mulherzinha inconformada.

— Ei, Dalva, abra essa porta! — Gritou o marido que acabava de chegar da rua.

— Agora não vai dar, Tonho. Vai ter de esperar eu desmontar a cama de novo.

— De que cama você tá falando, mulher?

— Daquela cama de casal grande e espaçosa que ganhamos da minha patroa. Já se esqueceu, cabeçudo? — Flou nervosa a mulherzinha.

— Ah sim, me liguei agora.

— Pois é, se a cama ficar montada, a porta do quarto não abre. Parece que vamos ter de desistir dela, já que não tenho como desistir da casa. Ouvindo isso o rapaz solta uma gargalhada e observa:

— Ora, eu falei que não ia caber, mas você é teimosa feito mula empacada, Dalva. Além disso, eu já vendi essa cama pra um colega meu. Preciso pagar a prestação da moto, que está atrasada. Se ficar sem a moto, como vou trabalhar?

— Mas quem deu autorização para o entregador de pizzas vender a cama que a doméstica aqui ganhou da sua patroa? Transtornado, o homem redargui:

— Você não perde mesmo a oportunidade de me humilhar por causa do meu emprego, né, Dalva? Ser entregador de pizza e marmitex pode não ser grande coisa, mas foi o que consegui arrumar por enquanto. Pelo menos não tô roubando de ninguém.

— Você é mesmo um cabeçudo, Tonho! Não estou falando nada disso. O que quero dizer é que você precisa respeitar as minhas coisas.

_ Ora, quer saber de uma coisa: vai cagar, Dalva! Vendi e tá vendido, afinal ainda sou o chefe da casa. Agora veja se desmonta logo a porra dessa cama.

Foi numa bela manhã de domingo que Dalva anunciou ao marido:

— Depois do almoço vou ao apartamento de um amigo meu lá do supletivo. Vamos gravar um vídeo comigo cantando um conhecido samba, para colocar no Youtube. Dalva sonhava em brilhar como cantora profissional. O marido meneou a cabeça negativamente e falou:

— Não vai não senhora! Onde já se viu uma mulher casada ir desacompanhada à casa de um homem desconhecido do marido dela! Que gravar vídeo o quê. Esse safado quer é te passar o ferro, mulher. E falando em cantar — o rapaz deu uma larga gargalhada com ar de troça — passei vergonha lá no serviço: uns colegas viram você cantando naquele programa de calouros da televisão e comentaram: “cara, sua mulher canta mal pra caralho”!

De fato, Dalva não se saíra bem na sua apresentação no show de calouros. Interpretando a música Como Nossos Pais, fora simplesmente massacrada pelos jurados. Um deles afirmou: “olha Dalva, a sua voz até que não é ruim, mas você é muito desafinada”. Outro foi mais grosseiro ao afirmar que Elis Regina deveria estar se revirando em seu túmulo, de tanta raiva.

Ante a chacota do próprio marido, Dalva se calara, mas em seu íntimo ficara magoada. “Sei que canto bem, apenas fiquei nervosa, só isso”, ela concluiu. E finalmente: “não vou desistir”.

Desobedecendo a ordem do marido, a mulherzinha rumou para o apartamento do amigo, logo depois do almoço. Tonho ficava a tarde inteira jogando sinuca no boteco do Chico Margoso, nem ia sentir sua falta. Estavam casados há pouco mais de um ano, sem filhos, Dalva não demorara muito a perceber que Tonho parecia preferir mais os companheiros de botequim a ela.

O apartamento do sujeito, um homem baixo e calvo, estava bastante desarrumado.

— Você toma alguma coisa, Dalva?

— Não, obrigada! Eu não bebo. Mas diante da insistência do sujeito, Dalva aceitou uma taça de vinho barato, afinal como ele lhe dissera: “é só para relaxar um pouco”. Passados, porém, alguns minutos, a mulher caiu num sono profundo e só conseguiu ouvir, antes de adormecer, aquele homem calvo dizer satisfeito:

— Boa noite, Cinderela!

Lentamente a mulherzinha começara a recobrar a consciência. De repente se viu nua, deitada numa cama cheirando à urina, ao lado daquele homem que lhe prometera auxílio com o vídeo. O homem roncava alto feito uma motosserra.

Envergonhada e ainda confusa, Dalva localizou suas roupas jogadas a um canto do quarto, vestiu-se e tendo encontrado a chave na porta, abandonou aquele local o mais depressa que pôde. Em casa o marido a esperava aflito.

— Posso saber aonde a senhora esteve esse tempo todo? Eu já ia procurar a polícia.

— Que dia é hoje, Tonho?

— É, a coisa foi feia mesmo! Hoje é segunda-feira, Dalva, três da tarde. Nem fui trabalhar, sabia? A mulherzinha começou a chorar copiosamente; assustada e trêmula, atirou-se nos braços do marido. Aos soluços, pôs-se a falar com certa dificuldade:

— Você estava certo, Tonho, eu nunca deveria ter ido lá. Aquele desgraçado pervertido me deu um “boa-noite-cinderela” e só Deus sabe o quanto ele deve ter abusado de mim.

O rapaz também começou a chorar. Dalva estava surpresa, pois nunca havia visto o marido derramar uma única lágrima. Nem mesmo quando um de seus irmãos fora covardemente assassinado, ela o vira chorando. Agora, com aquele pranto, ele parecia compreendê-la e compartilhar da sua dor. Foi então que o homem quebrou o silêncio, desfazendo todas as dúvidas:

— Escute, Dalva, sei que sou meio grosso e por vezes até mal-educado. Entretanto, eu te amo muito! Não se preocupe, meu amor, tudo vai ficar bem. A polícia dará àquele safado o que ele merece.

— Tonho — respondeu a esposa emocionada — sei que errei, mas, por favor, não me peça para desistir do meu sonho de ser cantora.

—Não precisa desistir, Dalva, afinal até nome de cantora você já tem. Eu só peço que tenha mais cuidado de agora em diante. Não iria suportar te perder.

Apesar de todo o episódio ocorrido, Dalva agora está feliz, porque voltou a se sentir amada. Ah, Dalva vai participar novamente do show de calouros, dessa vez, porém, com uma canção mais adequada ao seu estilo e com o apoio irrestrito do marido, que será o seu violonista.

Quando duas estrelas brilham em sintonia, o poder de realização de um sonho fica mais fortalecido.