Tá Viajando?

A cadeira voava sobre os passageiros em direção ao atendente da empresa aérea. Refrões inventados no calor do momento cutucavam a ineficiência do controle de vôo. As filas esticavam apavoradas e transformavam o saguão em um labirinto hostil. Foi justamente nesse emaranhado lento que os primeiros olhares se cruzaram. Ele, com maleta executiva e terno bem cortado. Ela, com os cabelos soltos e sedutor vestidinho regional.

- Que inferno isso aqui, né?

- Inferno? Parece mais o purgatório.

- Como assim?

- Ôche! Ninguém sabe ainda pra onde vai.

Ele esboçou um sorriso natural. Ela continuou cantarolando algo suave. Sentiu-se atraído pela reflexão imediata, e deliciosamente humorada, no meio daquele caos. A doçura da sua fala se equilibrava com uma dose sutil de ironia ácida. Ele sempre procurou isso em uma mulher. Ela sempre o teve de sobra.

- Desculpe a grosseria, mas você vai pra onde?

- Se Deus quiser, pra Bahia. Visitar a mainha.

- Sério? Nossa, que inveja!

- E você?

- Brasília. Tenho uma reunião importante hoje.

- Ôche! Melhor pedir ajuda pro santo.

Agora ele gargalhou com vontade. Santo pra que? Queria era um anjo daquele no seu caminho. Mulher de verdade, brasileiríssima, despojada, natural, gostosa, eternamente baiana. Ainda hipnotizado pelo sotaque resolveu arriscar:

- Você não quer beber alguma coisa?

- Mas...

- Não se preocupe. A fila não anda há mais de uma hora.

- Hum... tá bom, então.

Ele a ajudou com a bagagem, enquanto ela desfilava charme. Pediu um café pra ele e um suco natural de acerola pra ela. Sentaram-se no chão, ao lado da loja de CD do aeroporto e conversaram sobre tudo. Futuro, desejos, viagens, coincidências. Em pouco tempo uniam saliva em um beijo demorado e espontâneo, ao som do refrão de “Você é Linda” que escapava da loja. Depois disfarçaram a timidez natural e decidiram voltar ao guichê da companhia para se informarem sobre os vôos.

- Bom dia, senhor.

- Você tem alguma previsão para o vôo 7036? Com destino à Brasília?

- Hum... vou checar... hum...

- Então?

- O último assento acabou de ser definido. O senhor precisará aguardar o próximo vôo, proveniente de Manaus, e fazer escalas em Santa Catarina e no Acre.

- Que? Mas quando será isso?

- Com sorte amanhã, senhor.

Ele ouviu risadas no balcão ao lado. Ela sorria, mostrando o bilhete eufórica. Ele não entendeu a alegria. Ela o abraçou e não se conteve:

- Fiz uma loucura!

- O que foi?

- Comprei o último bilhete pra Brasília.

- Mas...

- Eu vou com você, meu lindo!

Ela sorria como nunca. Ele decepcionava-se. Ela sonhava com a continuação daqueles momentos. Ele percebeu que nem gostava tanto assim das baianas. Ela viu um futuro ao seu lado. Ele se arrependeu por ter puxado conversa. Ela propôs nomes para os filhos que viriam. Ele fugiu pela porta de emergência do aeroporto.

E nesse exato momento, enquanto ela desfazia o sorriso, o sonho dos dois voava pelos ares.

Felipe Valério
Enviado por Felipe Valério em 19/06/2007
Reeditado em 21/06/2007
Código do texto: T533531
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