O menino e o Velho

O menino estava parado, sentado à beira da estrada, bem embaixo da placa de parada de ônibus. Como era domingo, o ponto estava vazio. O menino possuía um olhar apagado e uma tristeza que escorriam de sua alma e molhava o piso frio da calçada quando o seu Fortunato apareceu na esquina caminhando mais lentamente que um caramujo paralítico.

Seu Fortunato tinha o rosto enrugado, cabelos brancos, nariz adunco, era baixinho e encurvado, mas possuía um sorriso franco e uma conversa fácil. Apoiava-se em uma bengala com um cabo em forma de dragão vermelho e todos os dias às oito horas da manhã ele saía de sua casa e fazia o que chamava de "caminhada da juventude", o percurso tinha mais ou menos uns 600 metros e consistia em circular no sentido anti-horário o quarteirão de sua casa, virando a cada esquina à esquerda e assim depois das quatro esquinas estar de volta a rua de sua casa.

Ele levava quase duas horas para percorrer o círculo completo do quarteirão. Tanto porque seu caminhar era lento e calmo quanto porque não abandonava, por menor que fosse, a possibilidade de iniciar uma conversa de alguns, como ele dizia: "minutos de eternidade!"

Uma vez perguntaram-lhe o porque dele fazer o percurso daquele modo e, depois de sorrir longamente e bater com a bengala no chão, estufando o peito, tal como faziam os "Proclamadores de El Rey" nos tempos de Dom João VI, declarou: Eu não faço apenas uma caminhada, mas dou voltas a menos no parafuso da vida, meu filho. Você já viu como se aperta um parafuso? ou como gira o relógio? ou já pensou como são as voltas da terra para que o Sol possa dormir no Oeste? Sempre da direita para esquerda! Tudo o que aperta, oprime, ou envelhece e mata, gira na direção da direita! Assim todos os dias eu giro minha vida na direção oposta, eu desfaço uma volta do parafuso a cada dia. É a minha fonte da juventude, o grande segredo do Universo!"

Para muitos seu Fortunato era um excêntrico, para outros um doido mesmo. Porém, para todos era um velhinho simpático e bem humorado!

Quando já estava desfazendo a última volta do parafuso daquele dia, ele observou o menino na calçada. O pequeno agora chorava intensa, mas silenciosamente. Ele parou e ficou olhando quieto o menino.

- O que é que está olhando o Matuzalém? - Perguntou o menino com um olhar de poucos amigos.

- É Fortunato, na verdade Iubit Rakas Fortunato Lesmoshe, a seu dispor jovem senhor! Falou fazendo uma comprida mesura, parecendo um cumprimento da época dos antigos cavaleiros medievais. Matuzalém deve ser um outro velho qualquer! - Respondeu sorrindo.

- Iu.. o que? Les... o que? Isso, desculpe, seu nome não serve nem pra cachorro! já caindo numa tremenda gargalhada.

- Meu nome é uma homenagem aos países de onde meus bisavós vieram: a Romênia, a Finlândia, a Itália e a Albânia e corresponde às três coisas mais importantes da vida, segundo disse uma pessoa muito querida por muita gente no mundo inteiro e que viveu no século I. Agora acho que você deve estar começando a pensar que meu nome é importante demais para botar num cachorro.... Apesar de eu achar que Rakas dava um bom nome pra um cachorro! Porém... Por que você estava chorando? Como é seu nome?

- É Lico, quer dizer Marcelo, mas tá bom. Sendo seu nome de cachorro ou não, me deixe em paz! Tô esperando minha tia, Lia, vou morar com ela nessa droga de vida!

- E por que alguém, tão jovem já acha a vida uma droga?

- Meu pai meteu o pé com uma vizinha que todo mundo chamava de gostosa e foi lá pro norte... Para, Paraíba, Amazonas, sei lá... É tudo a mesma coisa: lugar longe, onde eu nunca fui, nem nunca vou! Minha mãe? Ela pirou totalmente com isso. Ficou triste, de chorar todo dia e toda noite! A gente perdeu a casa, o seu Antonio, é o dono, pediu de volta e agora que minha mãe foi e ficou no médico e não vai voltar logo... Vou morar com minha tia.

- Vai dar tudo certo! No final sempre tudo dá certo! Pode esperar um pouco aqui. Vou ali em casa e já volto.

- E tem outro jeito? Aqui é o ponto do ônibus. Minha tia mandou eu esperar aqui.

Surpreendentemente, seu Fortunato ganho velocidade e logo chegou a sua casa. Demorou por lá uns 5 minutos e voltou também apressado com um pequeno quadro apertado sob o braço oposto ao da bengala.

- Eu queria te dar de presente algo que meu avô Felix Lesmoshe me deu a muitos anos atrás, quando eu também achava a vida chata como ela não devia ser e as coisas não estavam também dando muito bem para mim. Aceite, por favor!

Lico a aceitou com a cara franzida de quem não está gostando do "presente de grego"

Logo o mostrou ao menino. Era um quadro muito colorido, mas não era feito de tinta, mas de linhas. Era uma pequena tapeçaria. Nela havia uma estrada, que atravessava primeiro um deserto e depois uma floresta, subia e descia uma montanha e lá no fundo havia o mar e terminava num horizonte azul com um lindo sol se pondo. Bem em cima do sol havia um pequeno envelope no qual estava escrito: "abra-me". Dentro do envelope havia um cartãozinho em que estava escrito "vire o quadro."

O menino virou.

Ele viu um emaranhado de linhas coloridas formando uma mistura de cores sem forma e sem sentido, pedaços emendados e várias pontas soltas que foram coladas para que não ficassem penduradas, havia ainda pequenos amontoados de nós e linhas. Era feio e caótico. Nem de longe e com muita imaginação parecia ser a figura do outro lado.

Num cantinho havia outro envelope igual ao primeiro e um outro cartão em que estava escrito: "Esta tapeçaria é sua, mas entenda que a vida parece as vezes ser este lado do quadro, mas ela é o quadro inteiro, os dois lados. Peça o terceiro cartão ao Fortunato!"

O garoto olhou desconfiado para o velhinho e disse: "Isso é uma piada?"

Ao que Fortunato respondeu: Lico, as vezes acontecem com a gente coisas muito ruins e as vezes isso acontece muitas vezes e por muito tempo e a gente tem o direito de achar a vida uma porcaria, porque ela parece uma porcaria, mas nossa vida é uma tapeçaria em que somente os artistas, que fazem a tapeçaria, sabem como ela deve ficar ao final: nós e os Deuses ou a sorte, ou a Deusa, ou o Deus único, depende do que você seja comprometido em acreditar. Se a gente não entender que devemos apenas seguir vivendo e fazendo o melhor que pudermos para alcançar nossos sonhos, sempre estaremos olhando a tapeçaria da nossa vida pelo lado errado. Tome o seu último cartão:

No terceiro cartão estava escrito: "Viva sem medo, sonhe muitas coisas boas, realize boas coisas e você será feliz!"

O menino ficou pensando.

Logo parou um ônibus, dele desceu a tia Lia que pegou Lico pela mão e já ia saindo quando percebeu o velho Fortunato que sorrindo se despediu e foi caminhando muito lentamente para sua casa.