Bolinhas pretas ou brancas

Sentada no interior do carro, ao lado do hospital, eu esperava. Toda espera é angustiante? Naquele instante eu analisava a vida. E o que é a vida? Apenas o ciclo nascer-viver-morrer? Oportunidades perdidas, oportunidades desejadas (conseguidas ou não).

Na rua deserta, apenas o transitar raro de algum carro quebrava a monotonia, o silêncio. No entanto, não atrapalhava meu pensamento. O sorriso dela permanecia em minha lembrança. O sorriso e a blusa branca de bolinhas pretas. Ou seria preta de bolinhas brancas? Saia ou calça? Saia, creio eu. O sorriso dela... a blusa branca (ou preta) de bolinhas pretas (ou brancas)...Foi assim que a vi pela última vez. E fora em menos de quarenta e oito horas. Agora ela estava morta. Eu aguardava a chegada do corpo. Tinha ido ao velório.

O vento soprava forte. Por que será que ele sopra mais forte quando sente o cheiro da morte? Sinistro... Cruel... Eu olhava as pessoas que, esporadicamente, passavam na rua deserta.Apertavam seus agasalhos contra o corpo.Andavam rápido por causa do vento. Um rapaz e uma mulher. Dialogavam. Julguei que iam a algum culto religioso. Um livro na mão dela. Uma Bíblia? Mãe e filho? Pareciam. Olharam a placa ao lado."Funerária.Silêncio. Parentes oram por um morto". Esquisito isso, pensei. Esquisito o quê?-repensei. A morte? As palavras? O casal olhar distraidamente a placa?

Olhei o relógio. Já passava da hora.Ninguém chegava para o velório. Talvez ela não tivesse morrido - pensava eu, tentando me enganar. Ao lado parou um carro. Dele desceu um senhor.Aproximou-se de mim. Confirmou a morte dela.O corpo demoraria a chegar.A cidade desconhecida. Ele um desconhecido.Eu uma desconhecida. Nós lamentando um mesmo fato: a morte dela.A morte:velha conhecida. Ela morta. Não que eu tivesse grande afinidade com ela. Não tínhamos. Talvez por falta de oportunidade ou talvez mais por desleixo nosso.

Deixar sempre para amanhã o que se pode fazer hoje; esquecer a incerteza do amanhã e não aprender as lições que a vida nos dá - ações comuns ao homem. Depois vê que não há mais tempo.Limitações da realidade nua e crua. E a gente nunca está preparado para essa hora "agá". Havíamos saído juntas.Nós três: uma amiga, ela e eu. Em menos de quarenta e oito horas. Entregamos sapatinhos de lã naquele asilo para aquecer o frio nos pés daqueles velhinhos, embora soubéssemos que eles necessitavam também de aquecimento no espírito.Era uma campanha do nosso grupo. Lá olhamos as hortas feitas por eles. Ela comentara alguma coisa, como comentara no carro, ao voltarmos para casa. Coisas banais: preço de manicure, de supermercados. Não sabíamos que aquela seria nossa última vez de batermos um papo. A amiga e ela deixaram-me.Convidei-as a entrar.

"Na próxima vez"-dissera. Não sabia ela (nem nós) que não haveria próxima vez.Despedimo-nos e eu olhei distraidamente as bolinhas pretas (ou brancas) da sua blusa branca (ou preta). Retribuí seu sorriso.

Nadir de Andrade
Enviado por Nadir de Andrade em 21/06/2007
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