Violentada

Desgraçado, filho da mãe... Tarde da noite, usando um shortinho, blusa de helanca e tênis ela corria e xingava sem parar, com raiva, muito ódio mesmo, e sem descuidar de olhar para trás a todo instante. Tudo em desalinho: os cabelos desgrenhados, o olhar esgazeado, a blusa suja... Tinha medo, estava apavorada, quase em pânico de que estivesse sendo perseguida. Desnorteada subiu a praça embalada, contornou os aparelhos de ginástica, atravessou a quadra e desceu na rua oposta. Ainda sem cruzar com viva alma dobrou à direita na primeira transversal e seguiu em frente desembestada. Estava cansada, porém com fôlego e disposição para mais um quilômetro mantendo o mesmo ritmo, ou, se duvidar, iria correndo até em casa, se soubesse a direção e o caminho. Queria gritar, denunciar, apontar o dedo indicador na cara do salafrário inescrupuloso e bradar aos quatro ventos: FOI ESSE CANALHA DESPREZÍVEL AQUI Ó...

Olhava pra todo lado mas não via um carro de polícia, até que avistou um homem na calçada oposta caminhando em sentido contrário e carregando uma bolsa de couro, possivelmente cheia de ferramentas. Tinha todo aspecto de ser um humilde operário, contudo ela o considerou muito suspeito e achou que não merecia a sua confiança. Evitou olhar pro sujeito, não queria constatar que tivesse sido notada por ele; nem por ele, nem por outro qualquer.

Apesar da sua prevenção natural contra o homem desconhecido, a simples presença dele serviu para lhe acalmar e melhorar seu estado emocional excessivamente tresloucado, parou de correr e seguiu caminhando ligeiro. Não reconhecia aquele local onde estava tão pouco conhecia aquela rua por onde andava, não havia placa de trânsito por perto ou condução à vista que pudesse lhe dar uma pista de que bairro era aquele, nada. Encontrava-se perdida, sem noção de norte ou sul e não fazia ideia aonde poderia chegar prosseguindo naquela direção. De repente, um táxi se aproximando.

Avistou o carro vindo não muito longe e logo desceu pro meio da rua acenando... PARE! PARE! PARE! O motorista - um senhor de cabelos brancos - notou que ela tinha uma bela fisionomia e aparentava ser de boa família, por isso, apesar do desleixo no qual se encontrava e do estado emocional abalado que apresentava ele parou o veículo. Ela entrou no carro, sentou no banco traseiro e disse o endereço de casa, para onde queria ir. “Não se esqueça de colocar o sinto”, disse o condutor enquanto engatava a primeira marcha. Na sua praxe diária essa era a sua primeira manifestação para quebrar a formalidade e dar inicio a uma conversa.

O automóvel partiu, e mal se afastou do local, o taxista, querendo propiciar um ambiente amistoso, logo informou: “Se a música não estiver agradando, eu mudo a estação do rádio”. Encolhida no banco traseiro com os olhos fechados, as pernas cruzadas e agarrada com as duas mãos ao sinto de segurança na altura do peito ela não ouviu o que lhe foi dito e permanecera calada. Seus pensamentos não tinham foco, moviam-se em turbilhão, e nos poucos minutos decorridos no carro em movimento, na sua mente passou um filme de toda a sua vida. Justo nesse instante, seus olhos marejaram.

Ela começou a soluçar. O homem ao volante, muito atencioso, olhou pelo espelho retrovisor e não se conteve, disse: - Perdoe a indiscrição, eu vejo que a senhora não está bem, tem alguma coisa que eu possa fazer pra lhe ajudar?

Ela respondeu: - Entendo que esteja compadecido por me ver assim descuidada e triste, e agradeço a sua preocupação. Sei que meu estado é péssimo, e tudo que desejo é chegar à minha casa o quanto antes, entretanto, depois do que me aconteceu hoje, estou muito envergonhada, de tudo: de mim mesma, do meu corpo, de ter que olhar para minha família, de estar lhe fazendo companhia neste momento, enfim... Infelizmente nada pode ser feito para mudar o que estou sentindo agora.

- A senhora não revelou a ofensa que sofreu, prefere se resguardar, tudo bem. Eu compreendo. Mas vou lhe falar: por não apresentar escoriações, hematomas ou arranhões no corpo, e levando em conta as suas palavras, eu quase posso jurar que a moça foi violentada.

- Fui violentada moralmente, ela retrucou. Senhor, não quero continuar esta conversa e nem outra qualquer, se é que me entende.

Aquele motorista de cabelos brancos à frente demonstrava ser de boa índole, não obstante era um homem, simpático e generoso, mas um homem estranho. Avaliou que seria mais sábio sofrer o seu infortúnio calada, e ficou muda. O condutor ao volante, gentil e compreensivo, acatou o desejo da sua passageira e não voltou a se manifestar, limitou-se a executar o seu ofício. O taxímetro girou por alguns minutos, percebendo que já se aproximava de casa ela enfiou a mão no sutiã e sacou uma nota que levava dobrada embaixo do seio, conferiu o estado do dinheiro salvo e constatou que era suficiente para pagar a corrida, e com sobra, disse então ao taxista: Mudei de ideia. Leve-me até a Delegacia mais próxima, por favor?

Durante todos aqueles minutos solitários no banco traseiro não deixou de refletir sobre o ocorrido nem por um segundo, e por fim decidiu não se acovardar. Medo, vergonha, impotência, solidão... eram os sentimentos que vivenciava e que a imobilizavam, porém compartilhava outros contrários, próprios da sua personalidade, tais como: coragem, honra, vigor, crença na justiça... e foram estes que a estimularam a tomar uma atitude mais condizente com a indignidade do momento. Determinada decidiu seguir a intuição.

Na Delegacia, disse: Quero denunciar meu ex-namorado de sequestro seguido de estupro.

Dilucas
Enviado por Dilucas em 13/09/2015
Reeditado em 22/02/2022
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