Conto com o seu voto!

Estava na hora de decidir meu futuro. Assunto na ordem do dia, nas reuniões de família. Ouvi tio Caio conversando com meu pai, que só abriu a boca para afirmar que eu tinha tempo, não adiantava pressionar. Até tio Caio sentenciar que era melhor tomar cuidado para eu não virar comunista. Uma sonora gargalhada estremeceu o ambiente, tive que sair correndo porque a vontade de rir contagiava. Não queria ser descoberto e nem ter que discorrer sobre algo que nem sabia bem o que significava. Para mim ser comunista só se encaixava no século passado e tinha perdido força com a queda do muro de Berlim e o fim da URSS. Precisava estudar e pesquisar mais sobre o assunto. E decidir meu futuro!

Andava falando demais. Só podia ser isso. Era difícil ficar calado com tantas opiniões divergentes circulando ao meu redor desde o meio do ano passado. Até entendia que por ser ainda bem jovem, os olhares de desprezo eram previsíveis quando fazia uma pergunta que não agradava a alguma parte. Mas gostava dos sorrisos com o canto da boca do restante dos presentes. Meu pai só observava.

Resolvi colocar lenha na fogueira e no final de um domingo quente, de conversas mais acaloradas ainda, comuniquei que depois de muito refletir tinha decidido meu futuro: iria ser Presidente da República! Silêncio... meu pai arqueou as sobrancelhas. Mamãe abriu um sorriso e os outros ficaram olhando para o chão. Não sabiam se riam ou choravam, seria uma semana conturbada. O único homem da nova geração estava a um passo de manchar o nome da família? Tio Tomás olhava as três filhas e se lembrava da Presidenta que ele não engolia. Todos voltaram para suas casas assustados. Meu pai terminou a noite em silêncio contrastando com um sorriso materno maroto.

Só depois de três dias finalmente alguma pergunta foi formulada: por onde iria começar? Diante da minha expressão de surpresa pediram que estudasse como era o cotidiano, atribuições, responsabilidades e qual a formação exigida.

Estava iniciando o último ano do ensino médio, a faculdade ali na porta. Gostava de pesquisar. E de pensar que podia mudar o mundo! Ou ao menos o rumo das conversas dos domingos, em família.

Não era fácil! Muitos ministros, assuntos dos mais variados, decisões, imprensa, estresse. E ia ser difícil passar desapercebido nas baladas. Talvez fosse melhor adiar um pouco a decisão... E procurar uma formação adequada: economia, administração ou comunicação (será que tem “com as massas”???).

Aí os fatos foram se sucedendo de forma rápida, no domingo seguinte tive que esclarecer sobre meus planos, houve uma grande discussão e gostei da polêmica! Quero ser presidente! Torna os domingos mais emocionantes! Na semana seguinte, mais político (precisava ser um, não?), lancei a perspectiva de começar como ministro... do Planejamento! Fui aceitando negociações e em mais uma semana já me via ministro dos Transportes. Mais uma, da Cultura.

Até que estraguei tudo! Disse que tinha mudado de ideia e faria jornalismo. O objetivo seria montar um meio de comunicação isento, focado em ouvir todas as partes e elevar os eleitores a seres pensantes, críticos. Dar a oportunidade de não figurarem mais como marionetes!

Silêncio... uma, duas semanas... no domingo em que se comemoraria o aniversário de falecimento da avó Cotinha, sentaram-me na ponta da mesa e meu pai tomou a frente comunicando a decisão familiar: já estavam nas tratativas para fundar um partido e lançar o projeto de minha candidatura, logo depois de completar 30 anos. Minha carreira traçada, administração, e tempo para casar com uma mulher bonita e discreta. A família bancaria todas as despesas até à eleição. Era um investimento pelo futuro da nação.

Única condição: esquecer o jornalismo e o projeto, que aos olhos deles, colocaria minha vida em perigo.

E já se passaram quatro anos. Administração trancada, educação física também. Encontrei-me em Sociologia! Passei para o quinto semestre e para comemorar estou no Tahiti curtindo um tórrido romance com duas lindas e discretas moças, longe da imprensa. Bancado pelo PFP, Partido da Família Progressista.

Fernando Antunes
Enviado por Fernando Antunes em 03/10/2015
Reeditado em 04/10/2015
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