Edmilson, o homem mais importante da Cidade

Na cidade entre as torres naturais, eles passam correndo entre um bairro e outro atrás de um caminhão. Edmilson é mais um entre o bando uniformizado, suando em ritmo de maratonista percorrendo as ruas em zigue- zague. Sua face embrutecida esconde sua tenra idade e o olhar profundo e compenetrado transparecem a maturidade e a dura realidade do rapaz que irá completar 29 velinhas no mês que vem. Moreno cor de cuia é chamado de Sarará entre os colegas. De estatura mediana e corpo franzino tem pernas e braços alongados dando a impressão de leveza e equilíbrio em seus movimentos, como se estivesse dançando no ar. Olhos castanhos atentos mantém-se esperto em qualquer situação como lhe ensinou seu mestre de capoeira que conheceu nos projetos sociais que participava na periferia onde morava com a mãe e três irmãos. De longe todos o reconhecem pelo balançar do seu cabelo “pixaim estilo black- power” no compasso macio e andar elegante.

Quando criança já trabalhava e pouco brincava; aos 9 anos já vendia picolé na temporada de verão e aos 12 anos era servente de pedreiro. O sustento da família dependia dele como filho primogênito que assume as responsabilidades do sustento do lar quando seu pai alcoólatra abandonou sua casa e meses depois foi encontrado morto numa sanga após ser atropelado em uma avenida movimentada. Cenas de violência doméstica e maus tratos invadiam seu sono na madrugada, quando levantava suado e caminhava até a cozinha para beber um copo d’água. Sua mãe Edna era uma descendente indígena e conhecia profundamente a cultura e tradição dos guarani, contando e recontando as histórias que habitavam suas memórias e foram transmitidas pelos seus avós. Sua mãe curava todas as enfermidades físicas e espirituais com o auxílio das ervas, repetindo sempre que na natureza encontramos o alimento, a cura, mas também o veneno por isso conhecer seus segredos era fundamental. Edmilson cultivava uma relação de cumplicidade com seus irmãos mais novos, Edson e Éderson e suas famílias costumavam se reunir no almoço de domingo. Edmilson não abria mão de manter a união familiar e as brincadeiras entre primos e irmãos. Estava convencido que momentos como esse eram a razão de sua vida. Amava a todos incondicionalmente, sua dedicada esposa Luiza uma paixão de juventude e procurava dar atenção máxima a educação de seu pequeno herdeiro Éverson de 4 aninhos. A preocupação de Edmilson era dar um futuro digno a sua família, por isso trabalhava demasiadamente e mesmo estafado pelo cotidiano seu semblante transparecia serenidade, altivez e tranquilidade.

Ás vezes, Edmilson parava para pensar nos ciclos da vida e considerava que podemos aprender com tudo. Na escola foi aprender a ler e escrever com uma professora da Educação de Jovens e Adultos que o alfabetizou e no seu trabalho começaram a exigir o diploma escolar. Até hoje pega numa caneta com dificuldade, mas a leitura descortinou novos horizontes para seu conhecimento. Edmilson tornou-se um ávido leitor e mantinha-se bem informado devorando jornais e revistas e até na internet sabia procurar os assuntos de seu interesse. Na escola da vida tornou-se um autodidata. Conseguiu aprender até a tocar violão e animava as noites de sexta- feira na pequena sala de sua casa. Era bem eclético e gostava de tocar Legião Urbana, Jota Quest, Vitor Ramil e Zezé di Camargo e Luciano. Lembra que na adolescência participava de mutirões de limpeza de lixo na comunidade e nas praias e se sentia importante pela nobre atitude, valorizando as boas ações que todas as pessoas, independente de sua classe social, credo ou cor, podem fazer para transformar o mundo em que vivem. Por trás da seriedade de sua personalidade, Edmilson era um sonhador, acreditava nas pessoas e sempre procurava ser solidário.

Na hora do trabalho, veste o uniforme amarelo, bebe bastante água, amarra firme o cadarço do tênis furado, estica o meião na altura do joelho e inicia sua jornada. Em dez minutos já está suando, mesmo com vento moderado e uma fina chuva. Vai passando e recolhendo sacos, empilhando e jogando na caçamba do caminhão de lixo. Lixo orgânico e lixo seco, misturados ou separados, demonstram a importância da coleta seletiva e da reciclagem. Abismado, lamenta: “Meu Deus, onde vamos parar com tanto lixo?”. Segue seu caminho e toma cuidado com os cachorros que latem e avançam em suas pernas e os cacos de vidros embalados sem cuidados que já o atingiram e deixaram uma cicatriz no braço com cerca de quinze pontos. Edmilson está acostumado com o forte odor e apesar de saber que seu trabalho é essencial para a sociedade as pessoas o tratam com discriminação e menosprezo. Percebe que o ignoram, vira um sujeito invisível que passa correndo, limpando e evitando que a cidade se torne num chiqueiro. Certo dia comenta com um colega: “Nós trabalhamos com a prevenção de doenças e epidemias, João. Eu li que na Idade Média, as cidades eram tão sujas que surgiu a tal da peste negra matando um terço da população da época. Devíamos receber salário de médico!” No lanche todos calavam para escutá-lo, sabiam que eram um rapaz instruído. No 21 de outubro se comemora o dia do Gari e recebem uma caixa de bombom do patrão. Em meio a sorrisos, Edmilson lembra da greve dos garis durante o carnaval do Rio de Janeiro e a cidade ficou um caos com montanhas de lixos nas esquinas, ratos e baratas por todos os lugares. Dessa maneira procurava sensibilizar seus companheiros para a importância do seu trabalho. Edmilson não deixava a peteca cair, autoestima é tudo para superar as dificuldades e fazer brilhar a luz da esperança. Como vive na periferia de uma cidade turística que é alvo de uma invasão de pessoas no verão, observa a quantidade de resíduos de todo tipo descartado nas ruas, nas praias, rios, lagoas, dunas... em todo lugar os seres humanos deixam suas pegadas, uma marca destrutiva. Admira os projetos que organizam voluntários para a limpeza da praia, responsabilizando todos pelo lixo acumulado trazido pelas marés. Gostaria de participar, mas é muito cansativo para ele que já trabalha como um super-herói. É categórico quando afirma: “Onde tem gente, tem lixo!” Durante o inverno na porção norte da cidade ocupada por veranistas e nas primeiras quadras a beira mar quase não há resíduos para coletar. Na cidade- fantasma no inverno somente os entulhos da construção civil. Entretanto na temporada de verão é surpreendente o descaso com a cidade e sua população. É lixo por tudo, não tem classe social que se salve quando não existe educação e respeito aos espaços comunitários. Quanto mais ricos, mais consumo e mais resíduos descartados. Maus hábitos não são apenas das comunidades em vulnerabilidade social e a questão do lixo é um problema global. Edmilson gosta do inverno é melhor para percorrer os mais de 20km diários de corrida recolhendo as sacolas e no verão é muito quente e muitas pessoas mal educadas, onde sua cidade de cerca de 40 mil habitantes transforma-se num amontoado de mais de 400 mil aglomerados na faixa de praia. Há 12 anos, Edmilson trabalha como gari e recebe gentilezas de algumas senhoras que alcançam uma garrafa de água gelada, pães ou biscoitos para amenizar a rotina da coleta. Mas, um dia desses se surpreendeu quando um rapaz cabeludo e barbudo passou por ele e gritou em alto e bom tom: “Tu é o cara mais importante da Cidade!” Abriu um sorriso e levantou o polegar demonstrando admiração e respeito pelo seu trabalho. Surpreso com o elogio, Edmilson ficou extasiado e entre um passo e outro uma lágrima escorria pelo seu rosto e repetiu baixinho: “Sim, eu sou importante.”

Publicado no Jornal Litoral Norte RS e Jornal A Folha.

Leonardo Gedeon
Enviado por Leonardo Gedeon em 29/10/2015
Reeditado em 30/10/2015
Código do texto: T5431271
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